COISAS DO CORAÇÃO
UM ABRAÇO E UM BEIJO
Demorei para entender o porquê que alguns atos de carinho fluem mais facilmente para algumas pessoas e para outras não. E foi muito difícil o tempo em que levei para compreender estas coisas do coração, pois levei toda uma vida esperando um abraço e um beijo que nunca recebi, de alguém que eu esperava tanto. E pouca gente sabe o quanto se perde com isso e quanta carência advém de tão simples atos, principalmente quando ainda somos bem jovens.
Por vezes, na minha juventude, trabalhei minhas ideias na tentativa de processar aquela tamanha falta de atenção, mas parecia que existia uma força descomunal a impedir que os corpos se aproximassem, e era duro perceber que os amigos tinham em abundância aquilo que me faltava diariamente.
Certo feita, recordo-me de ter ganhado um lindo pião. Era bem grande, colorido e no meio havia uma espécie de alavanca que, ao ser apertada, fazia girar continuamente aquele lindo brinquedo. Cada irmão havia ganhado algo diferente do outro. Nos divertimos muito com tantos presentes distintos.
Ele nunca desconfiou, mas este ato me fez perceber algo que nunca tinha me dado conta: havia amor naquele coração. Sem querer, ele me acariciou com muita ternura. Até pude esquecer de algumas sovas que levei, pois aquele ato de carinho foi maior do que as várias formas de violência sofridas anteriormente.
Não sei como meus irmãos processavam aquelas informações, mas eu tinha avidez de respostas, por isso pude detectar com maior rapidez aqueles indícios. Desconfiei que era uma forma de pedir desculpas ou mesmo perdão.
O tempo foi passando, e quando eu tinha dezoito anos, houve um oportunidade ímpar para ele quebrar aquela barreira. Eu iria me despedir dele, pois partiria para fazer um curso longo e ficaria bastante tempo fora. Ele me levou até o ponto onde um carro especial viria me buscar e até carregou minha pesada mala, mas não conseguiu me abraçar ou beijar. Apenas um aperto de mão selou aquela partida.
Algum tempo depois, já formado e casado, vieram minhas filhas. Comecei então a perceber que eu também tinha dificuldades para abraçar e beijar. Um dia chorei baixinho, solitariamente, mas como me doeu saber que aquela coisa ruim estava comigo também. Daí parti para uma briga interior muito grande, até que consegui romper com aquele ciclo terrível da aridez para demonstrações de afeto.
Hoje não abraço e beijo tanto como gostaria as pessoas queridas que me cercam, embora sempre esteja me policiando, mas tenho certeza que matei aquele mal em mim. Vejo que minhas filhas são excelentes mães e são supercarinhosas com seus filhos. Que alívio vê-las se doando em abraços e beijos para meus netos.
Reparei que também gosto de dar presentes e não sei rever minhas filhas, meus genros e meus netos sem levar algo para eles. Sei que meus atos atuais não se traduzem como formas de perdão, mas talvez reconheça que aquele pião que ganhei de presente me marcou para sempre e talvez essa mania seja um reflexo daquele antigo ato paterno.
Aos 59 anos, um ataque do coração levou meu querido pai para sempre de nossas vidas. Ali partia um homem honesto, sério em tudo que fazia, trabalhador e dedicado à família, mas que nunca encontrara forças para quebrar a dureza do seu coração. Apenas dava o que havia recebido. Creio hoje que ele sofrera muito por nunca haver dado um abraço ou um beijo em um dos seus filhos.
Diante do caixão, aproximei-me lentamente. Toquei de leve sua pele fria pela primeira vez. Passei a mão no seu rosto e levei meu rosto para pertinho do dele. Finalmente nossos corpos se encontraram. Eu o abracei e o beijei, sem conseguir derramar lágrimas. Havia uma leve expressão de riso nos seus lábios, talvez para passar algum tipo de calor humano como forma de retribuição para aqueles últimos gestos de carinho.
Autor: José Maria Cavalcanti
Lindo e emocionante texto, você conseguiu conter as lágrimas naquele momento único, mas eu não consegui lendo esta linda declaração.
Beijos
Que lindo!
Impossível conter as lágrimas. Lembranças do meu pai, que assim como muitos desta geração, devido sua cultura e criação não manifestavam seu carinho pelo abraço e pelo beijo, mas nos deixaram a base do que somos.
Abraço.
Um homem de seu tempo. O termo ser pai é novo, pois antigamente era a mãe a responsável pela educação e o zelo com as crianças. Ao homem cabia o importante dever de ser um bom dono de casa. Parabéns pelo belo texto.
Maravilhoso, espero que escreva mais desses textos, não consegui conter minhas lágrimas.
Um grande abraço meu amigo.
Ché.
Existem várias formas de demonstrar o amor. Parabéns! De sua mãe.
Valeu, Ché, por sempre compartilhar os sentimentos que
brotam do seu coração cada vez que você lê os textos deste
cantinho que você adotou como seu, um rincão de amigos leitores.
Olha, meu irmão, ainda bem que hoje você pode dizer: antes tarde do que nunca. Você teve tempo de há muito custo dar o que não recebeu e nosso pai não teve. Não podíamos falar o que sentíamos, a geração era outra. Sinto muitas saudades de meu pai, que pode não ter declarado seu amor em atos de carinho explícito, com muitos afagos. Mas, por onde andava se lembrava de nós todos. Tinha outra forma de demonstrar.E, posso dizer com todas as letras que ele foi um avô muito carinhoso, pelo menos com sua primeira neta, que foi a que mais junto dele ficou.
As pessoas estão carentes de cuidado e respeito, por isso passe adiante e não esqueça de sorrir com os olhos …
E vamos abraçar mais.
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Pai, Pai, Oh Pai sempre cobrado, admirado, lembrado, anunciado, falado, mal falado, elogiado,
indiciado, acusado, maltratado, odiado, esperado, ignorado, mas pela sua própria natureza sempre muito amado ou mal amado.
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