RITUAL DA CHUVA
A FESTA DA CHUVA
Quando o céu se encapelou, envolvendo o azul que enchia pouco antes o horizonte, foi se fazendo noite, bem mais cedo que o costume.
De repente, aquele breu tomou conta de tudo, roubando-nos o pôr de sol, que sempre se fazia mais bonito dali da varanda, na lateral alpendrada do casarão branco. Nosso cantinho ficava na ponta da rua mais importante e mais movimentada da cidade, em função das casas comerciais.
Assim compreendi por que meu pai havia pedido para que os filhos mais velhos fizessem uma boa limpeza na cisterna. Eu e meu irmão ficáramos maquinando a razão de ele mandar gastar o pouco que ainda restava das nossas reservas pluviais. Não sei até hoje se fora sabedoria ou previsão, visto que não era certo chover, mesmo sendo o período do ano que uma vez ou outra se dava algum tipo de precipitação pluviométrica.
O que antes era calor leve, por causa daquela constante brisa que vinha da serra, passou a clima abafado, sem que qualquer folha mexesse nos umbuzeiros de nosso quintal. Todos transpiravam, até que começou a soprar um vento forte, que fazia bater portas e janelas. Quando a poeira começou a levantar, era certo que a chuva iria logo cair, assim balbuciou dona Cícera, com base no conhecimento que o legado dos anos lhe concedera.
Ela foi a primeira a sair correndo para recolher as roupas do varal lá de casa, usando uma grande bacia para ajudar na catança apressada das prendas já secas. As galinhas, que antes ciscavam, começaram a correr alucinadas com o vexame da nossa segunda mãe, uma espécie de governanta, de muitos anos a serviço do nosso lar.
Fui correndo para a janela para ver a correria da rua. Muitos apertavam o passo para não serem alcançados pelos primeiros pingos que prometiam chegar rapidinho. O comércio cerrava suas portas, aproveitando para fazer uma dispensa coletiva dos funcionários, visto que não adiantaria prendê-los por mais tempo. Era certo que os retardatários ficariam presos debaixo de uma ou outra marquise da rua do comércio.
No outro lado da calçada, percebi que só a padaria não se deu ao luxo de fechar, pois era a hora que os clientes buscavam o pão quentinho, o leite, a manteiga e outros itens para o jantar ou lanche da noite.
Não tardou muito, e logo irrompeu o trovão mais alto que eu já havia escutado, depois que o céu fora riscado de fora a fora. Fazia tempo que eu não via tanto preparo para o evento da chuva. Não só eu estava ali observando cada detalhe, como também meus irmãos, visto que ainda não possuíamos televisão, e o radinho de pilha era um privilégio de nosso pai, que estava ausente por causa de suas constantes viagens.
Nossa mãe, que parecia alheia ao corre-corre e a todo agito que Cícera fizera no quintal, já preparava o jantar, pois o cheirinho das comidas se mesclava ao da terra molhada, que insistia em permanecer nas minhas narinas.
Finalmente do alto desabou uma copiosa chuva, que fez tudo escurecer de vez, apenas as luzes dos postes tentavam fazer frente àquelas trevas advindas daquele temporal inusitado. As águas, depois de escorrerem pelas bicas e calhas empoeiradas, logo passaram a correr ladeira abaixo, indo diretamente para o ribeirão, que passava no menor nível da rua da feira.
Ninguém se maldizia porque ali chover era a maior bênção que poderia ocorrer. Não era só um lavar de telhados e ruas, certamente todos encheriam suas cisternas, latas, baldes, bacias ou outros recipientes; o rio receberia aquele manancial de águas novas; o açude elevaria seu nível, que naquela altura estava bem abaixo do mínimo necessário para suprir com carros-pipas as necessidades dos habitantes. A chuva era vital para todos em muitos aspectos.
E, mais ainda, era a alegria da meninada.
Esperei um pouco e saí com meus irmãos a correr debaixo dos jorros que fluíam das bicas da rua, apenas os calções nos distinguiam naquela meia-luz, pois as camisas e os chinelos havíamos atirado pelo janelão da sala. Juntamente com os outros meninos da rua, pulávamos feito loucos, levantando os braços e pulando, como se fosse uma dança. Sim, era muita alegria por ver e sentir na pele tanta dádiva do céu, caindo sobre nossa cidade, como se somente ela houvera sido abençoada naquele momento.
Tomamos tanto banho que nossos lábios ficaram roxos e tremiam por causa do frio. Voltamos para casa, fazendo uso do acesso lateral do casarão, uma portinhola mais estreita que saía na parte coberta do quintal. Nossa mãe já estava ali com as toalhas, distribuindo uma para cada. Depois nos serviu leite quente para esquentar nossos corpos. Trocamos de roupa e fomos para a mesa jantar, felizes da vida.
Puxa, aquele fato quebrou nossa rotina e marcou para sempre em minha memória, pois há muito não caía um pingo de chuva naquele grotão. Aquelas sensações em minha mente ficaram cristalizadas: a mudança do tempo repentina, trovões, relâmpagos, o cheiro da chuva, a terra molhada, a força da água varrendo a sujeira da rua, dos telhados, arrastando tudo que estava no seu caminho. Pessoas erguendo as mãos aos céus para agradecer, pois sabiam que aquela graça faria com que o campo desse suas dádivas com muito mais força e vigor.
Com a presença de mais água nas cacimbas, nos depósitos, nas barragens, nas lagoas, a esperança fora renovada, e era certo que teríamos uma linda festa do milho, haveria mais feijão na mesa, e os animais teriam um prado verdinho para pastar.
Tudo foi recebido com muita alegria e comemoração que eu diria que aquele momento poderia ser traduzido como a festa da chuva.
Autor: José Maria Cavalcanti
Certo dia um amigo de São Paulo me ligou e me perguntava como estava o tempo aqui em Natal.
-Muito bom!Está chovendo.-Respondi.
Só sabe o valor da chuva quem percebe a importância dela e procura aproveitar cada gota.
Parabéns! Bons tempos.
É bonito ver a felicidade de carências preenchidas.
Gostei do título “Festa da Chuva”. Sei o que é ficar
sem água, sem esperança e sem comida.
Renato.
Quando chove no Sertão, tudo vira mar: de alegrias e de fartura.
E uma festa de cores vai se espalhando pelo solo, outrora ressecado,
reacendendo esperanças e aumentando a motivação.
Ao lançar um olhar para tal gente sofrida, fazemos um mergulho
na alma para ver que ali dentro o que mais se observa é a
determinação e abundância de fé, inda que não tenha água.
O Sul e o Sudeste são ricos porque chove. Com a falta desse
precioso líquido, muita coisa acontece… O clima muda, tudo
seca, inclusive a pele, e se esvazia a alegria e o sorriso do
rosto. Os ânimos diminuem pela ação do calor, e a capacidade
de aprender é afetada, ainda bem que não é tirada a imaginação.
Graças a Deus pela chuva!
Podemos até nos maldizer da chuva, mas as cidades são construídas num formato que desobedece às forças da natureza, sem falar que é pura incompetência daqueles que cuidam do escoamento de tanta água que deveria ser naturalmente absorvida pelo solo, se não estivesse encoberto pelas capas das mantas asfálticas.
Januário
Compreendi melhor o porquê de tantas músicas lindas pedir para
que Deus faça chover no Nordeste:
“Oh! Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe,
Eu acho que a culpa foi
Desse pobre que nem sabe fazer oração”
Amo o Nordeste com toda sua beleza, mesmo sem chuva!
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Você me transportou no tempo, jogando-me de volta naquela tempestade que se deu na minha cidadezinha, num ano bem distante. Vixe, aquilo foi um marco. Nunca ninguém viu tanto água jorrando pelas calçadas, telhados e nas cabeças de tanta gente que enchia as ruas, erguendo as mãos pro alto em agradecimento a Deus.
E você acredita que ainda tem gente que amaldiçoa essa riqueza e presente dos céus? Tem sim, mas é que nunca passaram pelo aperto da seca.
Maria de Fátima
No texto vi que vivemos épocas iguais, pois também possuía uma grande cisterna em nossa casa e meu pai sempre descartava as primeiras chuvas, visto que serviam para lavar o telhado e as calhas dos detritos das aves, gatos e roedores. Lembro que havia uma canalização, no final da imensa calha, que direcionava as águas pluviais para a boca da cisterna e na ponta do tubo de zinco colocava um pano para evitar algum resíduo maior: folhas, penas, restos de pipas ou de balões juninos. As chuvas sempre eram bem-vindas e tudo se alegrava: o mato ficava verde, o gado saciava a sede, as galinhas ciscavam a terra úmida, os barreiros se enchiam, o rio mostrava sua caudalosa corredeira e as crianças disputavam, de casa em casa, as bicas mais fortes das calhas. As bacias colocadas ao relento se enchiam e aquela água ia direto para o pote, que armazenava a água pura caída direto do céu. Era chegada a hora do plantio do milho, do feijão verde, da batata doce, do jerimum, da macaxeira e do inhame. Hora também de agradecer a Deus toda a perspectiva de fartura. Quem melhor descreve a importância das chuvas é o lavrador, o agricultor, o vaqueiro e todas as pessoas que se beneficiam delas. Hoje abrimos as torneiras e temos água tratada, mas houve um tempo que só se tinha acesso, retirando-a de cacimba, barreiros, poços e açudes. Por isso, quando chovia era a nossa garantia de continuar tendo acesso a esse líquido essencial a vida.
Esta música, cantada por muitos artistas famosos da nossa MPB, é uma criação coletiva sobre o poema de Patativa do Assaré. Lado B do compacto Nordeste já, de 1985, gravado por diversos artistas em benefício das vítimas da seca do Nordeste.
Enquanto não houver solução para este problema que se arrasta por séculos, ele terá que estar sempre apelando por ajuda, como é o caso da forte seca que está assolando mais uma vez o Nordeste neste 2012.
É duro saber que esta tal de triste sina tem cura, basta que os poderosos queiram.
E o nordestino, além de ser acima de tudo um forte, é extremamente hospitaleiro, amigo, sendo capaz de repartir até os ultimos alimentos que tiver em sua despensa.
Apesar das mazelas e sofrimentos, ainda estampa no rosto um sorriso de boas-vindas.
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