Instrumento Exótico
PEÇA VALIOSA
Com pouco recurso naquele final de mês, preferi ficar na Redinha para economizar combustível, embora já fosse um vício prazeroso cruzar a belíssima ponte estaiada, Newton Navarro, que embeleza o visual da orla natalense. Fiquei em minha residência descansando, embalado pela suave brisa que sopra do mar para as dunas.
Sabia, pela experiência adquirida, que aquele período chuvoso era de minguante no meu negócio – um ramo do paisagismo voltado para os cuidados dos jardins e áreas verdes de hotéis e mansões da capital potiguar. Assim permaneci no embalar da minha rede, imaginando um tempero novo para o enredo de uma história que insistia em não sair da minha mente. Este envolvente hobby de escrever estava aos poucos consumindo todo meu tempo livre.
Logo fui surpreendido pelo toque da campainha. Lancei um olhar pelo espelho, usado como um retrovisor para enxergar melhor a rua, e percebi se tratar de uma senhora, que soava o timbre de forma insistente. Ao me aproximar, percebi que ela estava acompanhada por um homem já maduro. De pronto, aproximei-me dos dois para escutá-los. Após as formalidades dos cumprimentos e da leitura rápida sobre o grau de periculosidade que eles poderiam representar, ganhei confiança, abri o portão e os convidei a entrar, vindo a saber que aquele homem era filho da senhora que estava na minha frente.
– Senhor – disse o filho, obrigado pela confiança e gentileza! Sei que somos desconhecidos, mas não somos pedintes, pode ficar tranquilo. É que minha mãe – apontado para ela – está doente, sofrendo com uma úlcera e, como estamos sem dinheiro, viemos aqui oferecer para o senhor comprar nosso velho piano, peça que foi herdada de nosso avô, para assim podermos comprar os remédios, recomendados pelo médico, antes da cirurgia agendada.
Escutei aquele homem disparar aquelas palavras quase de um só fôlego, mas me detive no olhar sincero e sofrido daquela senhora.
– Senhor – prosseguiu ele, é uma peça antiga, e estamos oferecendo por um preço muito baixo, apenas para socorrer minha mãe. Deve valer uns mil reais, mas estamos pedindo somente oitocentos. Venha vê-lo em nossa casa aqui perto e tenho certeza que o senhor irá apreciar o instrumento.
De imediato falei do meu pouco conhecimento sobre instrumentos musicais e que não possuía nenhuma habilidade para tocar instrumentos de corda. Notei o desapontamento no semblante de ambos.
Movido a compaixão, segui com eles até a Rua Peixe-rei, que dista um pouco longe da minha, Rua Dourado. Ao chegar na casa deles, uma residência simples, mas bem arrumada, entrei no cômodo onde se encontrava o objeto da negociação proposta.
Achei muito estranho aquele instrumento musical, que nada me fazia lembrar um piano. Foi como jogar uma ducha de água fria, pois a imagem da peça quebrou minha expectativa. Diante do impasse criado, pronunciei-me dizendo que iria fazer um contato com um amigo do ramo, Levi, que era dono de um antiquário no centro de Natal.
Estabeleci contato com Levi no intuito de repassar aquele objeto desconhecido e, no fundo, queria também dirimir minhas dúvidas sobre a autenticidade e o real valor daquele objeto.
Levi mostrou-se interessado e me falou para eu tomar nota do número da peça e, se possível, também o nome do fabricante, esculpido na madeira. Depois da averiguação, constatei que havia um número por trás do piano, e a descrição da peça também foi passada para Levi.
De posse dos números de registro da peça, Levi mandou fazer uma proposta de dois mil reais pelo piano e que, caso concordassem, iria fazer o resgate do produto imediatamente.
Tudo que o dono do antiquário falou foi repassado para senhora e seu filho por mim, que fiz a recomendação de tratar bem o comerciante, devido a presteza em nos atender de imediato. Retornei para minha rede na varanda de minha casa.
Soube depois que nem bem eu havia deixado a casa, Levi encostou seu carro em sua porta. Era um caminhão especial de mudança, que veio buscar o piano, o qual foi carinhosamente embalado e depositado cuidadosamente dentro do baú do grande veículo utilitário.
Toda a comercialização foi feita com assinaturas de documentos de compra e venda e de origem da peça antiga, tudo isso diretamente entre Levi e a senhora com seu filho. Após a conferência dos valores combinados, que já estavam separados em um envelope, Levi seguiu lentamente com seu caminhão pela rua sem pavimentação.
No aconchego do meu lar, finalmente comecei a tirar meu cochilo antes do jantar. Mas, novamente o toque da campanhinha interrompeu meu leve sono. Usando novamente o recurso do espelho, vi que era o filho da senhora da venda do piano.
Fui atendê-lo e logo fui surpreendido com o envelope que ele me entregava, contendo um mil e duzentos reais. Sem compreender, pedi explicações, e ele disse que a quantia pedida deles fora de oitocentos reais e não os dois mil reais recebidos, assim sendo, era justo devolver o troco, que eles achavam que caberiam a mim.
Retruquei dizendo que eu já estava muito feliz por ter ajudado e não queria nenhum tostão, pois eles estavam necessitados, e eu pouco fizera para merecê-lo. Depois de muito bate-boca, convenci o homem a ficar com mais um mil reais e que eu ficaria apenas com duzentos reais, para dar um fim naquela polêmica.
Acordo fechado, ficamos felizes, principalmente ele, que não esperava tanto.
Alguns dias depois, parou diante da minha casa um entregador especial. Era uma encomenda com uma caixa de vinhos importados, um presente inesperado. Ao ler a nota explicativa, dei-me conta do que se tratava.
“João, você não pode imaginar o grande presente que você me deu. Aquela antiga peça foi vendida por doze mil reais em São Paulo, pois se tratava de uma espécie de instrumento que originou o atual piano, coisa muito antiga. Aceite este pequeno agrado como forma de agradecimento. Seu amigo, Levi”.
Compreendi naquele instante que nunca devemos nos omitir em ajudar, pois pode nossa ação nos beneficiar mais do que a ajuda a ser dada.
Autor José Maria Cavalcanti
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Muitas vezes, jogamos fora ou não damos o real e devido valor a coisas que para nós são desconhecidas. Passeando de carro, encontrei uma gerigonça de ferro jogada no lixo e, como estava em um carro utilitário, resgatei a peça por mim desconhecida. Não me demorei muito circulando com a peça exposta em minha caminhonete e logo me veio um proposta de compra. O interessado me ofereceu cem reais pelo produto e me falou que se tratava de uma máquina de perfurar papel e assim poder colocar o espiral de arame. Após fechar a negociação, o homem logo constatou que a peça estava em pleno funcionamento e confessou que o seu valor comercial era de quatrocentos reais. Naquele momento, lembrei das palavras do padre de minha comunidade, Vilela, que certa vez me disse: “o que se é jogado no lixo pode ser a solução dos problemas de muita gente”
Lendo esse texto, logo lembrei do período de infância em minha cidade natal, Macau. Naquela época, todo mundo se conhecia e todos se ajudavam. Tudo era muito coletivo, pois quem tinha um pouco a mais fazia questão de deixar à disposição em caso de necessidade de outro, era tudo compartilhado. Quem tinha um carro, estava ciente em ajudar em caso de doença, podíamos buscar folhas de goiabeira na casa de fulano, erva cidreira lá em beltrano ou mel de abelha lá em ciclano. Meu pai possuía três vacas e todo o leite retirado era distribuídos entre os vizinhos. Cabia aos prósperos comerciantes em adquirir nossos objetos mais valiosos para que as famílias pudessem realizar as festas de casamento de seus filhos. Um tempo em que todo mundo se cumprimentava e os mais velhos sabia o nosso nome e o de nossos pais, tempo de muito respeito. Naquela época, como todo mundo se conhecia, nada era jogado fora, pois o que não servia para uma família encaixava como uma luva em outra.
Essa bela experiência me fez compreender o quanto somos limitados em nosso vasto conhecimento. Por mais que saibamos de várias coisas, só as pessoas que lidam diretamente com o segmento é que realmente sabem como tramitar com certa facilidade. Cada qual tem sua importância e o seu valor. Se aquela senhora e seu filho foram em minha casa no dia e horário em que eu geralmente não estou, que me encontraram solicito, que tudo que foi proposto deu certo e no final todas as partes ficaram felizes, só há uma explicação: foi por que houve uma bela conspiração do destino, obra de Deus.
É comum em nossa sociedade se tirar proveito de toda e qualquer situação que se apresente. A pessoa que intermediou a negociação poderia ter ficado com boa parte da grana que envolveu a venda do instrumento antigo, mas teve grandeza em seu coração para ajudar a quem estava necessitado. Do outro lado, vemos que aquela doença da mãe fragilizou a família, a ponto de dispor do objeto de grande valor sentimental, mas que talvez fosse a única gordura disponível a ser queimada num momento difícil.
A história retrata dignidade e padrão de moralidade a serem seguidos.
Dolores
Vivemos tão inseguros por causa da violência urbana que deixamos de ver o outro como um ser humano e sim como um possível delinquente. Parar o que se está fazendo ou sair do conforto do seu lar para socorrer o próximo é um grande mérito. Exemplos como os que são vistos nesta história nos encorajam a rever nossos conceitos.
Soares
Bella história con dos mensajes importantes, el gran valor que pueden tener algunas cosas, y la gran recompensa que podemos recibir cuando nos animámos a ayudar
Esse seu ato, meu irmão, é bem típico da família Cavalcanti, que sempre fica disposta a ajudar os outros. Lembro que papai quando ia a feira para voltar sempre com os braços cheios de novidade para nós, não deixava de comprar alguma coisa daqueles feirantes que ninguém comprava nada. Parabéns e segundo a lei da natureza: é dando que se recebe.
Como sempre excelentes textos, parabéns!
Dá gosto ler os artigos.
Boa sexta-feira!