Boteco do Zé Capiau
LUME DE QUEROSENE
Quase na boquinha da noite, era hora de dar uma espiada nos candeeiros que clareavam todas as noites o largo do balcão da bodega. Essa era uma das tarefas do Nil, com apenas doze anos. Ele checava os pavios, limpava os que estavam pretejados, erguia os que estavam curtos e depois reabastecia cada um dos reservatórios.
Como ainda tinha muito por crescer, aquela tarefa seria mais difícil se não fosse o auxílio do surrado tamborete que ficava ao lado dos papéis e pesos da velha balança Filizola.
A seguir, repetia o mesmo procedimento com as lamparinas, podendo finalmente acender todos com palitos da Fiat Lux em chama.
O clarão amarelo dos vários lumes restabelecia parcialmente a luz natural que aos poucos sumia, à medida que o sol se escondia por sobre as margens distantes do Rio Potengi.
Enquanto servia uma bicada ou picava o procurado fumo de rolo de Arapiraca, ou fatiava mortadela pros clientes, seu pai, José Rocha, mais conhecido como Zé Capiau, lançava um rabo de olho pra ver se o garoto fazia as coisas direito.
O jovem já sabia o que aconteceria, caso ele não varresse a frente do comércio de duas a três vezes por dia e também as dependências internas. O coro comia solto quando ele se esquecia de suas funções por causa da bola, o que não era difícil, porque sua paixão naquela idade era o futebol e desejava jogar no time principal do Treze da Vila, do qual seu pai era um dos fundadores.
Enquanto sua única irmã, Nilma, cuidava na cozinha de pôr reparo no cozimento da massa do cuscuz e das raízes, inhame e macaxeira, itens indispensáveis pro café noturno, sua mãe, Maria das Neves Barateiro ou simplesmente Dona das Neves, quando não estava preparando rolinha e nambu assados para os tira-gostos, ficava no caixa para receber os pagamentos a vista. E ela também podia ser vista anotando na caderneta de débitos os apontamentos dos que deixavam as contas no prego, acertos que normalmente se davam ao final de cada mês.
Aquela era a rotina da família do bodegueiro mais conhecido da Vila Dom Eugênio, um dos bairros afastados e esquecidos de Natal. Enquanto a capital há muito tempo tinha uma iluminação pública que dava vida à belíssima noite natalense, aquela periferia ficava à margem do progresso. Mas aquilo não era de todo ruim, pois o negócio do querosene vendido avulso era um dos pontos fortes daquele pequeno comércio, o mais próspero do lugarejo, que também fazia as vezes de mercearia. Ali se achava quase tudo: além de uma variedade de cachaças, vinho de barril, ginebra, cinzano e jurubeba. Havia também embutidos, coco seco, goma pra tapioca, farinha de milho, farinha de mandioca, rapadura, biscoitos, bolachas, peneira de palha, raspa-coco e até tamborete, pavio, barbante, linha pra pipa, corda, pente, brilhantina e pião.
Após o encerramento das atividades de cada dia, José Capiau tomava seu aguardado banho e ia pro seu lugarzinho preferido da casa. Naquela altura, já havia tomado seu café e estava na hora do seu descanso, na varanda do sobrado, construído sobre a área comercial. No seu radiozinho de pilha, cochilava sintonizado com a Rádio Cabugi. Pelas ondas do rádio, escutava o programa Patrulha da Cidade, já que era comum perder a Hora do Brasil.
E ele nem desconfiava que naquele dia uma notícia fosse roubar sua noite de sono. O prefeito Tertius Rebello acabara de anunciar a iluminação pública da Vila Dom Eugênio, cumprindo o plano de metas do Governador Aluizio Alves, que havia presenteado o povo norte-rio-grandense com a criação da COSERN e da TELERN. O novo prefeito também queria cumprir aquela promessa feita pelo ex-prefeito, Djalma Maranhão, que havia sido deposto e preso em 2 de abril de 1964.
De sobressalto, ergueu rapidamente seu corpo comprido e magro da rede, descolando seu ouvido do alto-falante. Agora sentado na rede, murmurou: “- Meu Deus, o que isso vai mexer com meu negócio?”. Disse baixinho, conversando com seus botões.
Pensou primeiro no pior: a perda da venda lucrativa do querosene, das pilhas, das lamparinas de latão, dos pavios, das velas e dos fósforos. E o apreciado refresco, poli e geladinho (picolé de saquinho) de Dona das Neves, que agora poderiam ser feitos pelas próprias mães da molecada, que diariamente corria com a garganta seca para se aliviar na sua bodega, depois das peladas no campinho perto de casa.
O que atenuava aquela tensão era que poderia se livrar dos problemas da geladeira a gás, colocaria telefone para atender a clientela e pra manter contato com os familiares em Montanhas/RN. Também teria um rádio que dispensaria as pilhas, uma vitrola e, no seu local de trabalho, teria uma iluminação mais adequada, com apenas um toque de botão. Ademais, compraria de presente pra mulher uma televisão; e os filhos poderiam se entreter também com a programação da tarde.
Não querendo assuntar aquilo para não jogar água fria na alegria da conversa das meninas, resolveu se aquietar. E com um olhar perdido para uma estrela que riscava o céu noturno, por fim voltou a se recostar e adormeceu, sopesando os prós e os contras daquela novidade. De uma coisa o bodegueiro tinha certeza, logo cedo a notícia estaria em pauta entre os converseiros, espalhando-se que nem rastilho de pólvora pelas casas das ruazinhas de terra da vila.
Quando comentou no dia seguinte com a família, houve um misto de felicidade e preocupação. Enquanto Dona das Neves refletia sobre benefícios e prejuízos, Nilma pensava num toca-discos Sonata para escutar os sucessos da jovem guarda e também sabia que sua mãe merecia uma Telefunken para assistir O Direito de Nascer. Seria um prêmio pra ela, pois só pensava em trabalho. Mas, de todos ali presentes, quem muito comemorou a boa notícia foi o Nil. Não que ele pensasse em assistir Batmasterson, Bonanza ou Perdidos no Espaço, ele na verdade só se lembrava de se livrar daquela obrigação maior que o fazia sair de campo sempre no melhor momento, um pouco antes das cinco da tarde.
E o que era promessa logo se concretizou naquele finalzinho de 1965. Isso fez com que o bodegueiro se rendesse ao progresso e se apressasse para chamar um bom eletricista para projetar as instalações elétricas e distribuir tomadas pra tudo que era lado. Nil estava tão empolgado que até se esqueceu da bola, atraído por aquele mundo de esquemas e de fios coloridos, disjuntores, fusíveis e chaves de fendas.
Não tardou muito, e as festas de final de ano já transcorreram com o clarão da luz elétrica. Havia muita euforia e alegria com os ares da modernidade. Mas a única coisa que ocorria na mente do jovem era que, a partir daquele dia, acabaria aquela triste obrigação.
Depois da noite da inauguração da bodega, Dona das Neves e Nilma apressaram os movimentos para mais cedo se livrarem dos afazeres domésticos e assim poderem correr pra frente da televisão novinha. A sala se encheu de risos e gargalhadas, tudo era descontração e felicidade.
De longe a contemplar a cena, Zé Capiau sorria com os cantos da boca. Mesmo já tendo seu rádio elétrico, permaneceu ainda fiel a seu cantinho e a seu radiozinho de pilha, afinal, não poderia jogá-lo fora, mesmo que de longe lançasse sempre um olhar furtivo para as impressionantes cenas que reletiam sobre o vidro do tubo de imagens.
Aquelas noites animadas foram se repetindo, e o garoto foi crescendo, livre de sua principal dor de cabeça. Nil, à contragosto do pai, que o queria bodegueiro, estudava até tarde, pois pretendia entrar algum dia para a Escola Técnica Federal. E a dedicação do rapazinho enchia de gosto os olhos da mãe, que levava sempre alguma coisa para ele comer, aproveitando o intervalo dos reclames. Ela, ao contrário do pai, enchia o jovem de dengos e, sempre que podia, dizia pro bodegueiro ” – Para, homem, de pegar no pé do menino!”.
Mas aquele sossego que Nil estava vivendo iria acabar logo. Ele, que estudava pela manhã e já havia substituído o horário de acender os candeeiros e lamparinas pelas tardes inteirinhas de futebol, ocorridas no campinho da vila ou no João Câmara, logo teria uma surpresa.
Isso se deu depois de completados dois anos da implantação das instalações elétricas nas ruas da vila, pois um fato inesperado iria diminuir a euforia dos que festejavam a aquisição das novas tecnologias para suas residências. Um súbito Black-out interrompeu o fornecimento da energia elétrica, fazendo com que Zé Capiau tomasse uma medida preventiva para não prejudicar seus negócios. Convocou a família e, diante de todos, declarou com a expressão mais carrancuda do mundo:
– A partir de hoje, do pôr do sol até fechar as portas, Nil terá que ficar de prontidão para acender, caso necessário, os lampiões e lamparinas.
Ao terminar a fala, ninguém ousava dizer qualquer coisa e até mesmo Dona Maria das Neves se calou. No fundo todos aguardavam a reação do jovem Nil.
Aquilo encheu o rapazinho de ira que se fechou, baixou a cabeça e saiu da sala cuspindo fogo. Com a cabeça quente, pensou: ” – Puxa, isso é sacanagem, afinal, já tenho quase quinze anos! Entre muitos resmungos e caras feias, desapareceu dali, mas, quando todos caíram na gargalhada, Nil de repente se deu conta que todos riam dele, aí percebeu que tudo não passara de uma armação do pai, acomunado com a mãe e a filha só para ver como ele reagiria. O episódio por muito tempo ficou sendo relembrado, pois ninguém conseguia esquecer a cara de mau que ele fizera naquele dia.
Escaldado e sem querer pagar pra ver, tratou de colocar um motor a mais nos estudos e logo foi aprovado no concurso para entrar na Escola Técnica Federal. Assim, em 1968, foi aprovado para iniciar o Curso de Eletrotécnica no ano seguinte.
Aquela aprovação foi uma espécie de carta de alforria e uma maneira de descartar de vez um retorno àquela chatice de atividade. E o descaso que Zé Capiau fez, ao saber da notícia, deixou transparecer que ali morria também o sonho que ele tinha de fazer daquele jovem um bodegueiro.
Autor José Maria Cavalcanti
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Ana Scatena escreveu um post esclarecedor sobre a etimologia do termo. Ele vem do grego apotheke, substantivo que designava os armazéns do porto de Atenas nos tempos da Grécia Clássica. A palavra deu origem a botica, boticário, botequim, butiquim, boteco enfim. Essa é uma dimensão cultural de boteco. A palavra, ao contrário do que se pode pensar, tem certa origem nobre. Tanto é verdade que uma firma importante no ramo de perfumes e cosméticos adotou o boticário (propietário ou trabalhador de botica) numa marca muito conhecida.
Tive a oportunidade de conhecer Seu Zezinho, e, no seu sítio, em Parnamirim/RN, fui algumas vezes para passar o dia inteiro farreando. Acho que só se importa quem gosta e é assim que eu via a preocupação que ele sempre demonstrou com a ascensão profissional de seu filho, Nilton. Como eu trabalhava com vendas, uma das coisas que gostava de ouvir dele eram as histórias que ele contava da época em que era comerciante. Certa vez ele disse que bastava um cliente entrar em seu recinto para logo identificar se o sujeito estava “liso” e que iria pedir fiado. “Tem cliente que chega lembrando compras anteriores ou elogiando muito as coisas, para logo pedir crédito. Ficava preparado, sempre dizia que tinha um compromisso para saldar e que não podia vender para receber depois. Só vendia para clientes antigos e os que saldava seus débitos no final do mês. Não pense que o cara que atravessa toda a comunidade para comprar na sua venda, desconsiderando as outras no caminho, que é por consideração, no fundo é porque ele deve nas outras mercearias.” Bela e justa homenagem. Parabéns!
Eta, butequinho gostoso esse do Zé Capiau. Me fez voltar num passado no qual ainda encontrávamos este tipo de bodeguinha pelos interiores das Minas Gerais. Às vezes se achava umas mais simples, com uma frente feia e um letreiro mal feito, com um cachorro magricelo e sarnento zanzano na porta, com as toalhas das mesas de plástico, pregadas com percevejo, uma cozinheira gorda, de bigode e chinelo de dedo, suando na beira do fogão, um banheiro sem vergonha de sujo e uma placa pendurada na parede: “Fiado só amanhã”.
O texto mostra vidas iluminadas pelo brilho dos velhos lampiões, candeeiros e lamparinas. As velas também entravam na composição do cenário, que se passa no interior de um boteco e da residência adjunta.
Dá gosto de ver uma família lutando unida e passando seus valores morais.
A narração resgata aspectos e características de um pequeno comércio que aos poucos vai se perdendo no tempo.
Talvez ainda possa ser encontrado um boteco assim em algum lugar distante dos grande centros, mas com certeza estará sem o “Lume de Querosene”.
Conheci Sr. Zezinho em 1985 e como ele era um homem muito calado, sempre que o encontrava gostava de puxar por suas histórias. Quando chegava nas lembranças de suas idas e vindas ao Rio de Janeiro ficava feliz em poder contar. Falava de como era próspero seu comércio, dando evidência a compra de seu primeiro carro,um jipe Williams novinho, comprado no dinheiro. Outra coisa que relatava, para comprovar a prosperidade era a compra de passagem aérea para toda a família para irem ao Rio e a volta em Navio de luxo, por algumas vezes. Mas, relatava a parte ruim também, como, por exemplo, das oportunidades que desperdiçou, dos terrenos que vendeu por pouco dinheiro, tudo para ir à procura de seu sonho: Morar no Rio de Janeiro. Tinha uma história antiga com essa cidade. Foi lá que conheceu Dona Das Neves e onde nasceram seus filhos Nilton e Nilma. Fez vários amigos, além dos familiares que foram também atrás desse sonho. Sobre a bodega sempre se recordava das figuras interessantes que por lá passavam, seja para tomar uma pinga antes do almoço ou no final da labuta, à tardinha, além dos seus antigos fregueses. Não se sentia preso ao trabalho, pois se inteirava das novidades de um modo geral. Ligava seu Radio ABC para ouvir as notícias do mundo sempre às 06:00h e quando chegavam seus primeiros fregueses ficava sabendo tudo sobre a Política, Futebol,Economia, da vida alheia do seu bairro. Estava sempre bem informado. Dona Das Neves e Nilma sempre contribuindo para fazer bolos, cocadas,café e outras iguarias para a venda na bodega. Todo seu estoque era comprado em grandes armazéns, que vendiam em grosso no comércio do Alecrim, onde há uma feira pública muito antiga. Sempre aos sábados. Quanto a chegada da energia me disse usar na bodega uma geladeira à gás, daquelas parecidas com um armário, com várias portas, que armazenava de tudo. Quando a energia chegou, dava-se início a outra fase da bodega. São muitas lembranças. Mas, me recordo que falou com tristeza da sua última vinda do Rio, quando encontrou uma nova realidade no seu bairro: A concorrência no seu ramo de comércio. Tinha alugado seu ponto e sua casa, mas não havia mais razão para continuar. Vinha com pouco dinheiro para recomeçar. As exigências eram outras. Em comum acordo com Das Neves pegaram o dinheirinho que traziam, compraram uma chave de uma casa em Parnamirim e um terreno à beira do Rio Pitimbu, onde aos poucos construíram uma casa e para lá se mudaram. Plantaram muitas árvores frutíferas, criavam bichos, tinha o rio para diversão. Era muito bom para quem visitava.Familiares, amigos da época da Vila Dom Eugênio, que sempre o visitava. O período junino era muito comemorado. Sempre fazia uma enorme fogueira para homenagear os santos. Os netos se divertiam com os fogos. Isso sem falar no forró. Era muito bom para os que visitavam, mas para manter o lugar limpo e em ordem, demandava muito trabalho, principalmente para Nilma. Sr. Zezinho era um homem reservado, dizia nunca sentir dor. Quanto a doença chegou, veio tudo de vez. Ele se foi nos deixando muitas saudades e até hoje falamos dessas lembranças de sua memória e esse artigo nos causou muita emoção.
A ida a “venda”, era disputada por mim e meus irmãos, pois sempre sobrava um troco que era convertido em puxa-puxa. Lata de querosene, sabão em barra, mortadela, conchas de açúcar em grossos papéis de embrulho, farinha, feijão e arroz. Era lá que se adquiria todas as coisas que só podia encontrar em dias de feira-livre: abridor, faca, ratoeira, panela de alumínio, canecas e prato de ágata, prego, pá, enxada, ferro a brasa, óleo diesel, bebidas e todo tipo de novidade da nova era da indústria do plástico (bolas, bonecas, copos, etc…). Lendo esse texto, lembrei de um época, década de sessenta, em que tudo era vendido em porções e se podia comprar uma única vela, um pedaço de sabão e alguns mililitros de óleo de soja, a novidade que vinha para substituir a banha de porco. As lamparinas, os candeeiros, o fogão a lenha e o ferro de passar, de minha casa, eram manuseados por meus pais que não deixava que crianças brincassem com fogo.
Sensacional. Parabéns!!!
Todos os textos escritos por você são de ótima qualidade.
Um abraço.
Adilson
Na minha última visita a Natal, no final de 2011 e inicio de 2012, tive o prazer de conhecer a encantadora Dona das Neves e a simpática Nilma.
A convite de Nilton e Gracinha, fomos almoçar no dia 25 de dezembro na casa delas, onde tive a oportunidade de escutar muitas histórias relacionadas ao Sr Zé Capiau.
Tive uma descrição completa, com riqueza de detalhes, do famoso boteco da Vila Dom Eugênio.
Ali, no aconchego da cozinha da Dona das Neves, além de saborear a deliciosa comida, escutei com atenção o sonho que o Sr Zezinho tinha de viver na Cidade Maravilhosa, o qual um dia se realizou.
Durante as narrações, pude sentir nas expressões dos filhos e da esposa a falta imensa que aquele homem honesto e trabalhador ainda faz naqueles três corações.
Voltando ao texto, percebi que a chegada da energia na vila foi um fato marcante que iria alterar completamene os costumes tanto da sua atividade de trabalho como de toda a vila. Ele soube aceitar isso com receios, mas enxergando todas as vantagens da modernidade.
Esta é uma merecida homenagem às famílias Rocha e Barateiro.
Aproveito este comentário para mandar um beijo especial para Dona das Neves e Nilma, que tão carinhosamente me receberam em sua casa.
Quem já viveu esta mesma experiência, sabe o quanto se sente ao ler um texto como este. Haja coração, meu amigo Cavalcanti.
Fui diretinho pra Olegário/MG, onde meus tios moravam numa casa iluminada por lamparinas, que ficavam penduradas na parede.
A rotina de dormir cedo tinha a ver com a economia que se fazia ao apagar o pavio mais cedo.
Acordar cedinho pra tirar leite das vacas, apanhar ovos no galinheiro para fazer omelete era gostoso.
Tudo era bem simples, mas tinha lá suas vantagens. Havia muito sossego naquele pedacinho de chão.
Hoje, vivendo na cidade grande com tudo o que a tecnologia nos concede, estou sempre voltando para as raízes, pois é lá que a gente consegue recarregar a bateria e tirar o estresse.
Gostamos muito do que escreveu sobre o Boteco de Capiau. Agradecemos. Lutamos, tempos bons, tempos de sacrifício, são coisas da vida, mas foi bom. Trabalhamos com união. Se vivia bem de acordo com as condições. Com os filhos Nilton e Nilma ficamos felizes. Vamos cuidar deles com exemplo e dedicação. Com muito sacrifício vencemos. Sem saúde, sem leitura, nos atiramos para o Nordeste e lá aparece o Boteco do Capiau.
Zezinho era o nome que gostavam de chamar ele. Não foi fácil chegar até o Boteco.Passsamos muita necessidade. Fiquei viúva em 2003. Desculpe essa história de Zé Capiau. Agradecemos muito a Deus, ele que está sempre do nosso lado.
Graças a Deus conseguimos chegar aos cinquenta anos de casado.
Boas lembranças. Obrigado!
Das Neves.
Zeca, depois da primeira leitura no domingo, a minha cabeça gira vivenciando essa fase da minha vida. Encontro detalhes do dia a dia, coisas que envolvem nomes das pessoas, do contexto, do sistema de transporte, o namoro na adolescência, etc. Mas antes gostaria de enaltecer mais ainda o conto.
Na verdade o ponto era conhecido como bodega do Capiau. Bodega porque as prateleiras eram ocupadas por produtos diversos, como: leite Ninho, óleo Benedito, café Vencedor, brilhantina Zezé, sabonete Leve, peça de corda entrançada, rodinha de madeira para carrinho, cigarros Miníster, Continental, margarina Bem te vi, bola Pelé, farinha, arroz, feijão gordo, macaça, cavalo claro, pavil para candeeiro, brote seco e doce, refrigerante Dore, Grapette, Crush, refresco de maracujá, rapadura, carne de charque, carne de sol, e de porco, kitut, carne da vaquinha, peixe agulha e avoador seco etc. A parte da bebida era: conhaque de alcatrão, cachaça de cabeça, olho d’agua e carangueijo, genebra, cinzano, etc. Os cereais eram vendidos por quarta, tudo enrolado em papel de embrulho. Fazíamos aquele monte de pacotes.
A bodega tinha mais movimento pela manhã cedo e no final da tarde. Chegamos a ter dois empregados: um se chamada “Uviu” e a outra se chamava “Mariquinha.
Os produtos mais procurados eram: o pão fresco, manteiga vendida em papel transparente, café em pacotes feitos a mão, etc. Os frequentadores se revezavam de acordo com as suas necessidades de sobrevivência. Tinham o perfil de baixa renda. Éramos considerados a fámília de mais posse. Alguns eram alcoólatras, passavam a maior parte do tempo em frente da bodega, sentados em um banco de madeira, debaixo de uma árvore chamada “pé de figo”. Eles chegavam pediam uma chamada ou uma bicada de cachaça. O meu pai Capiau fazia uma mistura de cachaça de cabeça com sementinha, erva doce e casca de laranja. Isso para os pinguços, por ser mais baratas, qualquer pratinha dava direito a uma dose. O tira-gosto era imbu, fatia de laranja e caju.
O mais famoso dos bêbados se chamava Bode Cheiroso. Esse nome porque não gostava de tomar banho. Este chegou a falecer por causa de uma cirrose. Os papos entre eles, os quais presenciei, eram sobre os cabarés que ficavam ao redor do bairro ou de alguma menina que foi expulsa de casa. O boato corria rápido, de que fulana filha de sicrana foi expulsa de casa porque se perdeu. Eu adolescente ficava na moita só ouvindo as conversas.
Os namoros eram idealizados. Ouvia-se músicas românticas e depois a gente ficava pensando naquela menina do sonho. Idealizava aquela menina linda nos braços.
Quando via uma linda garota, ficava do balcão olhando para ela. Ela lá na janela e eu cá no balcão.
O sistema de transporte era precário. As ruas eram de areias. Se andava um bom pedaço para pegar o ônibus. E tinha poucos. Quando aparecia, vinha se arrastando cheio de gente. Lembro também do nosso entretenimento. Quando não tinha freguês, ouvíamos as novela no rádio como: Jerônimo herói do Sertão, A cabana do Pai Tomaz.
Como leitura, adorava ler os Gibis entre outros cito: Rin tim tim, Superhomem, O Fantasma, Tio Patinhas, Xerife, Bolinha.
O Capiau ficava furioso quando me via lendo essas revistas. Nesse contexo despertei para o futebol. Aí a história foi outra. O Capiau pegava pesado comigo porque eu fugia para as peladas e deixava ele sozinho no balcão.
Paralelo a tudo isso, estudava para conclusão do primeiro grau. Na época era primário e ginásio. Com o conforto da energia elétrica, o ambiente foi se modernizando. As bodegas passaram a se chamar mercearias. Os eletrodomésticos passaram a ser a sensação com a chegada das geladeiraas, dos liquidificadores, das televisões etc.
O Capiau foi a primeira pessoa a instalar televisão na Vila Dom Eugênio. Era a válvula, tinha uma enorme traseira e era muito pesada. Esse eletrodoméstico foi trazido do Rio de Janeiro no ano 1969. Nela vimos a copa de 1970.
A vila Dom Eugênio virou festa nessa época. A Bodega do Capiau era a sensação naquele momento. Debaixo do pé de figo só se falava nos dribles de Pelé, nos lançamentos de Gerson e nas jogadas de Jairzinho. Eu, como jogador do Treze da Vila, ficava alucinado com essas jogadas.
Meu caro Zeca se continuasse com os meus escritos, com certeza iria sair do foco do conto. Por isso vou parar por aqui. Nós aqui de casa ficamos radiante com esse registro. Isso nos mostrou que estamos mais vivo do que nunca. E, uma coisa muito importante que para o ser humano é muito prazeroso, sentir que tivemos trajetória nessa passagem pela vida. Como minha mãe lembra: passamos sacrifício, mas vencemos. É esse sentimento do esportista quando vence uma batalha. Ele grita, dança, pula, corre. Você como artista das letras percebeu e registrou a nossa chegada na reta final. Destaco a participação da Nilma nos detalhes aqui narrados.
“Nessa vida, nada que seja bom é realmente perdido. Fica fazendo parte de uma pessoa, torna-se parte de sua personalidade.” Os Catadores de Conchas, Rosamunde Pilcher. O texto narra uma época comum a todos nos anos sessenta. A chegada da luz elétrica, que veio para estender o dia e facilitar a vida. Lembro que depois da televisão e da geladeira o item que mais vendia era a enceradeira para dar brilho a cera vermelha, Cardeal, que passávamos com um pano no chão de cimento queimado, uma evolução da engenharia, visto que a maioria das casas tinham seu piso revestido de tijolo aparente. Lembrei também da composição de Sivuca, Feira de Mangaio, na voz inesquecível de Clara Nunes, com o rol de produtos mencionados no texto e nos brilhantes comentários. Com diz Chico Buarque: “Tempos de quintais, tempo em que o medo se chamou jamais”.
Lendo o texto do Boteco do Zé Capiau, me lembrei de todo um passado, onde muitas pessoas estudavam à luz dos candeeiros. Quantas donas de casa prendadas fizeram seus trabalhos manuais debaixo do lume de uma lamparina.
Lembro-me também dos candeeiros de querosene ou de petróleo de iluminação. O líquido usado tinha cor avermelhada e possuía um cheiro bem característico, sendo comprado sempre numa vendinha, numa bodega ou num boteco.
Os candeeiros ficavam nas casas nos suportes de parede ou em lugares cômodos, como na cabeceira da cama, em cima da mesa ou do guarda-louça. E as pessoas se achegavam ao péd do lume para aproveitar bem o clarão no breu da noite.
A mudança pra luz elétrica fez mudar todo esse quadro. Só quem viveu pode saber as vantagens da modernidade.
Hoje um jovem apenas pode imaginar o que foi tudo aquilo.
Muito legal esta lembrança!
Tatiana
Com um pano, sempre a postos, pendurado no ombro, passava o dia atrás do balcão. Quando lhe pedia uma pinga, era com três pequenos pedaços de carne de sol em um pires que servia a aguardente. Conhecia seus clientes e cuidava da saúde de todos: “- Tá bom por hoje, cuidado com a saúde” dizia a um e a outro. No pé do balcão tinha um caixote de madeira que servia para as cusparadas dos bêbados, mas ele não gostava desses inconvenientes. No seu botequim tinha todo tipo de bebida, mas sua especialidade era cachaça de cabeça e das mais variadas marcas. O Bar da Seleção, não servia a todo mundo, pois, como dizia o nome, só tinha direito a clientela selecionada. Esse era meu tio Antônio Pedro, que firme como rocha atendia sua clientela, impondo muito respeito ao ambiente. Foi o que me fez recordar esse belo texto.
O cheiro da lamparina, do querosene, da fumaça, sinto-os até hoje.
Se foi bucólico, não sei, mas que foi bem inocente há isso sim foi esse tempo do lume do querosene.
Bela lembrança, bela peça literária.
Lucas
Parabéns! Texto que me faz lembrar da minha infância em Natal..o poli…kkkkkkkk
e-abs
Roberto Capistrano
Acesse o blog de Roberto Capistrano:
http://robertoacapistrano.blogspot.com
Ótimo artigo …me faz lembrar de nossa querida natal…
Acesse o blog de Roberto Almeida Capistrano:
http://robertoacapistrano.blogspot.com/
Saber ouvir sempre será um grande aprendizado. Saber transmitir escrevendo como se fosse um filme em nossas mentes é uma arte. A arte de escrever, traduzir da memória para a realidade. O Dom de Deus nas mãos do homem. Bom texto, grande história de homens de valor e determinação. Artur Simões –
Na minha pouca experiência de vida, hoje apenas com 26 anos, aprendi com esse texto como foi a evolução do nosso interior do Brasil e acredito que tenha sido assim em todo o nosso território. A chegada da energia elétrica, fios e televisão contada através da história de vida de um menino, que ao invés de tocar o empreendimento familiar só queria estudar, se fez muito divertida e interessante pra mim já que não sabia que as pilhas chegaram antes da luz elétrica. O texto além de minucioso em sua forma de explicar o espaço e o tempo, é didático. Gostaria de ler mais estórias como essas!!!!! Obrigada pelo sopro de conhecimento de uma época não vivida por mim.
Olá Nilton, finalmente consegui tempo para ler o texto. Excelente, uma aula de história de Natal e um retrato fiel de uma família que conheci ainda criança. Personagens retratados com extrema fidelidade. Lembro ainda da famosa bodega, da TV…do campo do Treze da Vila, do Sr. José, D. Maria da Neves, Nilma e de você Nilton, não tão menino como retratado no texto, mas pessoas que moram no meu coração.
Caramba, Zeca, que enredo interessante. O recorte da história ficou muito bom. Para mim que conheci seu Zé, foi possível imagina-lo na bodega…e o Nilton moleque…enfim todos da família. Parabéns! Só hoje pude ler o conto. Vou falar pra Wini e Perikles lerem tb. Abração.
Que delícia de texto. O interessante é esse fio criado entre a memória do contador, provavelmente o Nilton, e a imaginação do escritor, transcrevendo, criando, fazendo sonhar e relembrar, costurando momentos que às vezes parecem apagados, como inexistentes, e trazê-los para o leitor, fazê-los existir novamente…Abraço.
Hoje, sexta-feira, é dia de tomar uma cachacinha no Boteco do Capiau. Lá vou eu saborear uma mineira com um tira-gosto de laranja.