Jamile
A Fuga de Jamile
No meio da noite e se aproveitando do sono profundo provocado pela bebedeira de uma noite festiva, o plano de Jamile achou o momento perfeito para ser ativado.
Guiada apenas por um minguado clarão de lua, ela sutilmente deslizou seu corpo seminu sobre as areias, por entre os camelos, que reconheceram o seu cheiro e não esboçaram qualquer reação.
Continuou rastejando sobre o ventre por um bom tempo, seguindo a direção da estrela indicada. Ao chegar ao local combinado, assustou-se com a ausência de Roshan, visto que aquela oportunidade era muito especial.
Foi ficando desesperada ao perceber que sua irmã não chegava como previsto.
Mas era tarde para desistir do seu sonho de se ver livre daquela maldita sina.
Para conter a fúria de Farah, seu senhor, deixou cair de propósito algo que iria salvaguardar a vida de Roshan, que ficara por alguma razão.
Desde que saíra de sua casa para casar, passara a pertencer àquela tribo nômade, da qual seu marido era o chefe.
Teria que se afastar bastante dali até chegar à cidade de Kabul, onde encontraria o refúgio prometido no porão da casa de Zilah, uma defensora dos direitos da mulher naquele mundo regido apenas pelo poder dos homens, segundo as informações que recebera.
Não conseguiria se não fosse a ajuda de um enviado para aquele fim. Vestiu a roupa trazida por ele e subiu no lombo do camelo reserva, seguindo para longe dali. Ainda havia um restinho de noite para proteger sua fuga, e apertaram o galope para não encontrar a costumeira tormenta de areia que se anunciava. À medida que se afastava do seu povo, seu coração se acalmava mais, embora estivesse ainda muito apreensiva com o desfecho final daquela iniciativa muito arriscada.
Agarrando-se na corcova do animal, destapou-se um pouco para poder respirar melhor, visto que dentro da burga o calor estava insuportável.
Enfim cruzaram o portal da cidade e, disfarçadamente, enveredaram por uma viela que levava até os fundos da casa de abrigo.
Zilah a aguardava ansiosa numa das esquinas, escondida para não ser reconhecida, mesmo que aparentemente ninguém espiasse. Entraram juntas e foram direto ao pequeno aposento onde ela ficaria por alguns dias, até que tudo se acalmasse.
Zilah passou para Jamile roupas limpas e se espantou, no clarão do lume das velas, ao ver aquele lindo rosto jovem e o corpo com as marcas de chibatadas. Isto foi causado como castigo exemplar, tudo porque Jamile fora ao encontro dos seus pais, que passavam por perto do acampamento. Aquela lição era para ela aprender a não se ausentar da sua tenda sem o consentimento do seu senhor e marido.
Zilah olhou carinhosamente para Jamile, deu-lhe um abraço e disse:
– Agora você ficará protegida. Não tenha medo, tudo ficará bem.
Jamile chorou de alegria por se sentir segura e por começar a sentir o gostinho da liberdade.
Depois da saída de Zilah, tentava em vão conciliar o sono, mas o filme da sua fuga ainda rodava na sua cabeça. Também seguia preocupada com o destino da irmã.
Vencida pelo cansaço, finalmente conseguiu se desligar de tudo a sua volta e seguiu dormindo até tarde.
Logo cedo no acampamento, Farah já estava com o chicote em punho, esbravejando todos os palavrões que conhecia e desejando ardentemente por as mãos no pescoço de Jamile.
– Senhor, pela inspeção que fiz, tenho certeza que ela foi raptada.
– Raptada? Quem ousaria roubar minha mulher debaixo das minhas barbas, homem?
– Senhor, ela saiu sem a burga ou qualquer outra roupa. Além do mais, há marcas de um corpo arrastado pela arreia e, para completar, foi achado um turbante rasgado, o qual possui a pedra de ametista, símbolo usado pelo califa Zahir, o que deduzimos ter sido ele o autor do sequestro.
– Maldito! Somente aquele canalha teria coragem de me afrontar.
Enfurecido, Farah sabia que não havia outro meio senão se acalmar. Aguardaria a hora certa para dar o troco, mais isso exigia um grande planejamento, afinal o inimigo era muito poderoso.
Jamile acordou um tanto tarde, mas estava tranquila, pois dali não poderia sair. Em cima da mesinha, percebeu que Zilah havia deixado um rico desjejum.
Enquanto saciava sua fome, recordava o motivo pelo qual seus pais haviam resolvido procurá-la, empreendendo uma longa viagem, após dois anos sem vê-los.
Naquele instante, ela começava a relembrar a vida de sua família em Saul, a pequena aldeia nas montanhas. Seus pais, que eram muito pobres, estavam passando por sérias dificuldades, quando surgiu a proposta de casamento feita por Farah, que soube da beleza e formosura de Jamile.
O homem ofereceu um camelo e duas cabras leiteiras pela mão da filha mais velha, o que foi motivo de muita alegria familiar. Quando Farah viu na alcova o rosto da mais nova, cresceu também por ela os olhos e ofereceu mais duas cabras pela companhia da mais nova. Alegou para o pai que as irmãs ficariam juntas, e a menor seria a dama de companhia de sua futura esposa.
Para os pais de Jamile, aquela proposta era a melhor coisa que acontecera para eles, como se Allah derramasse muitas bênçãos sobre a família. Sairiam da miséria, teriam um camelo, quatro cabras e nunca mais passariam necessidade. Além do mais, seriam duas bocas a menos para serem alimentadas.
As meninas perceberam a felicidade nos olhos dos pais, quando foram comunicadas sobre o acordo matrimonial feito. O casamento logo se deu, e tudo aconteceu na presença do líder da comunidade, que abençoou a união.
Durante a boda, todos estavam felizes, menos Jamile, que seguiu na companhia da irmã para viver com seu dono e senhor.
Enquanto Jamile repassa sua vida, no conforto da sua tenda, Farah já está mais contido em sua ira, recebendo afagos nos braços de Roshan, que por sua vez estava feliz porque passara a ser a número um. Queria aproveitar esse privilégio, antes que seu senhor se engraçasse com uma outra bonitinha.
Sonhava dar algum dia um filho a Farah, assim quem sabe gozasse de maiores atenções do seu homem, já que sua irmã não havia concedido ao marido um varão.
Passado algum tempo, com a preciosa ajuda de Zilah, Jamile fugiu de seu país para ser adotada por uma família inglesa. Com o nome de Jane Power, estudou, teve uma carreira de muito sucesso como modelo internacional e pôde escolher alguém para casar.
Com o prestígio e influência do marido, estava regressando para rever seus pais no Afeganistão para apresentar seu filho aos avós. Enquanto voava, recordava-se daquele encontro com eles no deserto. A motivação para aquela grande viagem era tentar obter o perdão das filhas. Estavam arrependidos, pois, por bens materiais, haviam trocado suas meninas, Jamile com 12 anos e Roshan com 10, entregando-as a um homem velho para casamento. Na data da boda, Farah estava completando 60 anos e queria ganhar aqueles presentes lindos e especiais, mesmo já tendo uma esposa ao lado dele, porém já idosa.
Quando todos se encontraram em Kabul, houve muita alegria, principalmente por saber que com o dinheiro enviado para seus pais, eles haviam conseguido comprar uma casa e agora viviam bem, embora que Roshan não estivesse presente, por estar satisfeita com seu destino.
Aquele reencontro foi de muita alegria e oportunidade para que os pais revelassem um segredo. O camelo que serviu de fuga para a filha era o mesmo que o pai havia recebido de Farah e que, com a venda das cabras, haviam comprado os serviços do homem que fora resgatá-la.
Jamile, com lágrimas nos olhos, abraçou carinhosamente seu pai e sua mãe e os perdoou verdadeiramente, sem deixar que em seu coração houvesse qualquer mágoa.
Noivas e não daminhas
A miséria e a ignorância estão presentes em quase todas as partes do mundo, porém mais enraizadas em alguns países. Quando o governo chinês oficializou um filho por casal, começou uma onda de abortos, quando se conhecia o sexo da criança, tudo porque a mulher queria dar um menino ao marido. No Polo Norte, os filhos homens são recebidos com festas, enquanto as meninas são sinais de infortúnios. Na Itália, firmava-se o casamento antes mesmo que os filhos chegassem na adolescência. No caso em questão, nos países Árabes ainda existem as tradicionais tribos de nômades, mantendo seus costumes seculares. O texto retrata bem a histórica sina das mulheres em relação a violência. Assim como existem mulheres de fibra que lutam pela liberdade e pelo direito de ser gente, ainda existe mulheres que, mesmo livres, comercializam seu corpo e banalizam sua existência.
Sendo fonte da vida, as mulheres devem ser muito amadas e verdadeiramente respeitadas. Viva a mulher!
O casamento infantil ainda é uma prática em muitos países do OOoriente médio, que têm apoio religioso para consolidar esta prática.
É, em outras palavras, uma pedofilia consentida, infelizmente,
O abuso de meninas tão jovens (a partir dos oito anos) é um crime.
Além do mais, elas são negociadas como objetos de consumo.
Infâncias roubadas e futuros infelizes.
Vivendo num país onde felizmente a mulher tem o seu valor, é muito triste ler esta história, sabendo que é baseada em fatos reais, coisa que muito nos impressiona e nos faz refletir. O futuro dessas crianças nos causa muita indignação.
A foto no texto, que retrata uma boda coletiva, comprova esta denúncia, onde as noivas (e não daminhas) aguardam o matrimônio com noivos que poderiam ser seus pais ou avós.
Lindo texto que nos leva a valorizar mais a liberdade que desfrutamos.
Parabéns ao Bollog por ser um canal de denúncia de uma barbaridade dessas. Nem parece que estamos vivendo verdadeiros avanços tecnológicos num mundo civilizado e, ao mesmo tempo, algumas culturas ainda persistem em práticas tão absurdas como esta.
Aqui o Afeganistão foi retratado com um lente de aumento, mas outros paíeses continuam
vivendo como na Idade Média.
A história de Jamile pode ser a história de poucas meninas, isto porque a maioria tem que se sujeitar aos seus donos e senhores, também chamados de maridos.
Vemos nas carinhas muita inocência, o que próprio da pouca idade de cada uma.
Fica muito difícil coibir tal situação quando a própria religião dá cobertura.
Achei interessane como você ambientou esse interessante conto. Ele narra a história de nossa heroína Jamile, que vive em uma região desértica, nos longínquas terras do Oriente.
As práticas culturais daqueles povos são bem distintas e chocam realmente.
Não sabemos qual a intenção de um homem longevo desposar de uma menininha, que ainda não se descobriu mulher.
Na religião que eles praticam, a mulher não tem qualquer valor, servindo apenas para procriar.
A mulher não tem rosto, vive toda coberta, sem identidade própria.
São práticas inventadas pela ignorância do próprio homem, nada tendo a ver com Deus.
Nos dias atuais, não cabe mais esta premissa de que pela sobrevivência da familia
aceitar dotes do noivo; com tantas novidades e tecnologia à vista, devemos sim
proporcionar a essas pessoas a possibilidade de informatizá-las para não
ficarem à míngua.
Vários ditadores e regimes estão sucumbindo, devido a informação de massas
e pensamentos sem barreiras. Não se aflijam os céticos, a liberdade chegará
para ficar mesmo que atrapalhada pelo desuso e inabilidade, mas ainda assim
chegará e teremos não saudades, mas recordações desses tempos sombrios
Belo texto Cavuca amei.
Essas histórias infelizmente, nos mostram como são complicadas as relações humanas…
Qdo o homem perceber que necessita de mais espiritualidade … amor … compreensão… talvez ele cumpra sua finalidade primeira – a que veio ao mundo, elevar-se espiritualmente ascender , completar sua evolução – talvez esse dia um dia chegue… Vou acompanhar a continuação da história!! parabéns pelo conteúdo… Cava… abçs…
Por muitas gerações ficou determinado que a menstruação configurava o ciclo sexual da mulher. Hoje vemos crianças menstruando cada vez mais cedo contrastando com a média de 15 anos em épocas passadas. Maria gerou Jesus aos doze anos e pariu aos treze e José tinha 45 anos. A conscientização da valorização da mulher, bem como o respeito as suas vontades estão acabando com essas abusivas injustiças. O blog trás a tona um tema bem pertinente a nova realidade em que existe na sociedade o repúdio a todo e qualquer ato de violência contra a mulher. Parabéns!
Foi ótimo você ter abordado esse tema. Espero, de verdade, que possamos nos dar conta do quanto devemos lutar contra as injustiças. Não só aquelas que batem diretamente à nossa porta. Mas àquelas que podem estar a muitos, milhares de quilômetros de distância, mas que não deixam de fazer parte da nossa vida.
Algo injusto nunca deixará de sê-lo se perdermos alguma oportunidade de ajudar.
O deserto é um lugar lindo e também nos ensina a lição da hospitalidade. Lá, receber uma pessoa em seu acampamento pode representar vida ou morte. Será que não poderia só representar vida, se as pessoas aproveitassem direitinho as oportunidades e não perdessem nenhuma em cuidar das que estão em dificuldades? Se essas crianças não fossem consideradas “moedas de troca”, seriam vistas e tratadas como realmente são: crianças. Lindas crianças!
Estarmos informados já é um grande passo. Obrigada!
Parabéns por usar o Bollog para “abrir nossos olhos” a essas realidades tão difíceis
Devemos sonhar sim com um mundo melhor, sem violências ou guerras provocadas por motivos religiosos ou pela ganância humana.
Sonhar com a liberdade para todas as pessoas, principalmente aquelas que vivem sem a informação ou outro tipo de miséria.
Sonhar com um mundo sem fome ou desigualdades, com oportunidades iguais para todos.
Sei que é idealismo, mas seria possível se não estivéssemos preocupados somente com o próprio império.
O texto, muito bem produzido, traz uma denúncia cometida contra criancinhas que vivem enclausuradas numa pequenez religiosa.
O acesso a Internet está abrindo os olhos dessa gente para uma outra realidade.
Chega de mandatários ricos, enquanto seus servos morrem de fome e necessidades!
Dora Becker
Belo conto, que estimula, aos leitores, a oportunidade de poder ver a
complexidade do ser humano, baseado na sua formação mental e mudanças
de personalidade em algumas situações circunstanciais.
Jamile: bela, formosa, sutil, planejadora, sonhadora, livre, estrategista, carinhosa, emotiva, talentosa; e em situações difíceis: infeliz, fugitiva, assustada, desesperada, apreensiva, camuflada, preocupada e estrategista.
Farah: furioso, vingativo, planejador, inimigo, afrontador, castigador, esbravejador e egoísta.
Zilah: defensora, amiga, observadora, carinhosa, protetora, bondosa e
em situações difíceis: anciosa e camuflada.
Zahir: suspeito, amaldiçoado, canalha e raptador.
Roshan: carinhosa, feliz, ambiciosa, oportunista, invejosa e sonhadora.
Boa história que revela as grandes diferenças culturais da moral, e que absurdo pensar que esses homens são considerados como religiosos. Esta é uma contradição, não. Um grande abraço, e parece ter se esquecido de alguns posts do mágico.