TOC
A BAILARINA DO AUTO DE NATAL
– Meu Deus, que inferno!
Jacy blasfemou em voz alta, mas logo bateu três vezes sobre a boca, repetindo o velho ritual. Fazia sempre aquilo, toda vez que alguns palavrões escapavam da boca. Não era como sua irmã mais nova que, além disso, cruzava sobre os lábios os dedos em cruz.
Ela estava chateada porque sua única filha, Amanda – 9 anos, não estava querendo seguir com suas aulas de balé. Justo quando ela havia conseguido um emprego melhor na parte da tarde, com o qual teria dinheiro para pagar com folga a paixão da menina pela dança, sem ter que apelar para o ex-marido com mais uma conta.
Precisava descobrir qual a razão para tudo aquilo estar acontecendo, justo naquele melhor momento de sua vida.
Achou estranho aquilo, ter que correr até a escola para buscá-la, toda acabrunhada, sem querer falar com ninguém.
Jacy não queria apertá-la de imediato, nem constrangê-la diante das amiguinhas.
A mudança de professora poderia ser a causa, mas era muito simpática, educada e profissional. Logo aquela suspeita foi descartada.
Pediu para sua mãe ficar com a menina naqueles últimos dias de semana, buscando ganhar tempo, antes de definir aquela situação. Sabia que sempre podia contar com ela, inclusive para sábados e domingos.
Aquele era um assunto muito sério, pois sua filha havia sido escolhida para fazer o já famoso auto de Natal, a apresentação principal da igreja. Havia ganhado aqueles dias para tomar uma decisão, antes que sua menina fosse substituída por outra bailarina.
No final do expediente daquela sexta-feira 13, varou todo o centro e bairros adjacentes para chegar até o Embu, um bairro simples da periferia da cidade.
Sua mãe, conhecida como Zezé, a esperava com o bolo que a filha mais gostava, e o café estava quentinho, recém-passado pelo coador.
Já acostumada com os corre-corres da filha, disse:
– Filha, senta um pouco aí, precisamos conversar – disse a mãe com o semblante e falar de preocupação.
– Conforme você me pediu, não tirei os olhos da Amanda, mas ela segue tristonha e quase incomunicável, parecendo dar mais atenção à televisão e aos brinquedos que a mim.
– Mãe, como nada mudou, vou levar a Amanda comigo, quem sabe nesse fim de semana eu consiga arrancar algo dela, pois só me restam dois dias para decidir e não quero que ela perca essa oportunidade de se apresentar.
Enquanto comiam, Zezé ficou olhando para a filha com uma mistura de pesar e sofrimento. Estava receosa de falar sobre o pai dela e das relações que poderiam haver entre a doença dele com aquela atitude da neta. Aquele era um tema que havia desgastado muito a família. Zezé sabia o quanto aquilo ainda poderia doer, pois fora muito sofrida sua separação do Abílio.
Abílio era muito trabalhador, cumpridor de suas obrigações e não arredava o pé da igreja, sempre que podia.
Embora fosse cheio de manias, era um homem muito sério e respeitado por todos.
Zezé, que já estava acostumada com o jeitão do marido, foi percebendo um aumento progressivo daqueles cacoetes.
Sempre soube pelos mais velhos que, com a idade, vêm as manias, mas o Abílio havia extrapolado todos os limites.
Checava as portas inúmeras vezes para ver se realmente estavam trancadas, repetindo o proceder com carros, portas e janelas. Além disso, tinha uma necessidade de alinhar coisas e a repetir algumas sequências de movimentos, fato que irritava e levava qualquer um à loucura. A coisa degringolou de vez quando começou a cuspir pra todo lado. Chegava a cuspir com o carro em movimento, mesmo com o vidro levantado.
Aos poucos ele foi se isolando, as pessoas já não queriam estar na sua presença, mesmo os familiares.
As constantes ansiedades e o mau humor dele foram minando tudo que havia de bom no relacionamento entre ele e a Zezé.
No emprego, respeitou-se, por algum tempo, toda a fama que ele havia construído com a clientela, mas não demorou muito para aquilo tudo desabar.
As coisas já não saíam a contento, e a situação ficou insustentável, não restando ao patrão outra saída senão a demissão.
Na igreja não foi diferente, ranzinza e chato. Aos pouquinhos Abílio foi ficando sozinho até que pediram seu afastamento das suas atividades junto à comunidade.
Um dia, afogou suas mágoas na bebida, e dessa iniciação fez-se uma prática diária.
Dava um jeito de esconder a bebida, disfarçando o consumo.
E o que era moderação passou a exagero.
Atingiu o clímax quando já não procurava disfarçar seus tragos na frente das pessoas.
Zezé aguentou o quanto pôde, mas, na tentativa de ajudar, recebia insultos e desaforos.
Teve uma conversa séria com ele, insistindo para que ele buscasse ajuda médica, mas dizia que não tinha nada e não necessitava de médico.
A contragosto e desesperançosa, um dia tomou a difícil decisão de romper aquela relação de 30 anos e que dela havia resultado duas lindas filhas.
Na verdade já eram moças, já crescidas e independentes, que ficaram ao lado da mãe.
Mesmo com o apoio solidário de suas “meninas”, Zezé não estava confortável, principalmente porque relembrava do belo jovem que havia conhecido no finalzinho de 1977, um homem amoroso e cheio de sonhos, e que havia proporcionado a ela um início feliz de união.
Zezé deixou que Abílio continuasse na casa e seguiu para viver na antiga residência onde viveram seus pais, após a entrega do imóvel pelo inquilino.
Nos finais de semana, Zezé fazia questão de ir com as filhas e a neta fazer visita para o Abílio, aproveitando o tempo para fazerem uma limpeza na casa e deixar comida pronta para vários dias no freezer e na geladeira.
Como que despertando do passado, Zezé percebeu na carinha da filha o quanto ela estava preocupada. Querendo poupá-la, Zezé desistiu de tentar relacionar os sintomas que Amanda apresentava com as manias do avô, pedindo a Deus para que tudo terminasse bem.
Jacy terminou de devorar a fatia extra que havia se programado comer. Um tanto arrependida, afastou-se da mesa, tomando como precaução cobrir com um pano o saboroso bolo.
– Mãe – disse ela – sei que você deve estar pensando mil coisas relacionadas com nosso pai, mas não quero atrair nada ruim para minha filha.
– Filha, por tudo que passei, é quase inevitável, sinto muito.
– Entendo, mãe, por isso vou indo, tá?
– Vai com Deus, filha!
Despediram-se com beijos e abraços apertados e se foram.
No seu íntimo, Jacy estava muito nervosa e tensa, tendo já conversado com uma especialista, que havia dito que ela teria que levar a Amanda para ver se havia nela indícios de TOC.
Antecipando-se ao trabalho da psiquiatra, Jacy sabia que teria que usar de muita artimanha para arrancar algo da filha.
O sábado e a manhã do domingo passaram voando, restando a tarde de domingo, já que no início da noite teria que começar os preparativos para dormir, afinal havia uma semana cheia pela frente.
Depois de algumas argumentações, Amanda se mostrava sempre na defensiva.
Tinha algo a esconder, já não havia dúvida, mas Jacy precisava buscar a melhor maneira para chegar lá.
Como última tentativa, veio-lhe a ideia de fazer uma espécie de teatrinho, simulando a chegada da menina à escola.
Fingindo ser a professora, Jacy esperava o pedido da filha para vestir a meia comprida, mas Amanda relutava a entregar a meia.
– Vamos, filha, peça para vestir a meia!
Ao olhar para a menina, percebeu que ela chorava.
Jacy desconfiou que talvez ali estivesse a raiz de todo problema.
– Mãe, a professora nova não sabe colocar minha meia. Ela veste errado, aí a meia me incomoda e não faço nada direito. Minhas amigas ficam rindo de mim – Amanda disse tudo em meio a lágrimas.
Depois de muita conversa com a Amanda, Jacy descobriu que a maneira de vestir a meia comprida era a motivação principal para a filha desistir daquilo que mais gostava.
A pequena havia cismado que somente a outra professora sabia fazê-lo adequadamente, fato que passara a incomodá-la.
Após abraçar a filha, Jacy prometeu para ela que só sairia da escola depois de colocar a meia nela, mesmo que viesse a se atrasar no serviço.
Amanda sorriu satisfeita e prometeu retornar ao balé.
E a alegria voltou a se irradiar nos olhos e no rosto da menina e da mãe.
Para isto, ela treinava muito e repetia os exercícios exaustivamente em casa.
Vencida aquela etapa e depois do grande sucesso da apresentação do Auto de Natal, Jacy ficou mais tranquila, mas sem deixar de observar a filha, desconfiada com a possibilidade de os fantasmas do passado familiar um dia pudessem voltar para assustá-la.
Passado o Natal e depois de algumas visitas psiquiátricas, o melhor presente que Jacy poderia ganhar foi a notícia dada no consultório. Com os vários testes feitos e entrevistas com a menina, ficou praticamente descartada a suspeita de TOC em Amanda.
O Transtorno Obsessivo Compulsivo, TOC, passou a ser popularizado com a afirmação do próprio rei da MPB, Roberto Carlos, que corajosamente assumiu em público que sofria com a doença. Na canção diz: “…mania é coisa que a gente tem mas não sabe o porquê…” Porém é necessário ter preocupação com tudo que é realizado demasiadamente e que se torna incontrolável, alterando a nossa rotina de vida. O texto retrata a situação com final negativo para Zezé e Abílio, contudo já existem medicamentos que auxiliam no controle desses distúrbios. O que mais me chamou a atenção foi de enxergar no texto a mania que temos em associar certos problemas passageiros com situações doentias, que muitas vezes são diagnosticadas por leigos, por comparações, ao invés de procurar uma ajuda especializada. Fica o alerta.
Parabéns por tratar este tema com tanta sensibilidade, algo que está presente na vida de muitas famílias brasileiras.
Uma história de amor e luta de uma mãe por sua pequena bailarina.
A saúde mental, é algo de difícel diagnóstico à princípio, mas tão logo seja diagnosticada, deve-se levar a sério…
É duro ver um pai de família ser acometido por esta ou aquela enfermidade….e presenciar o fim da relação dessa forma. Coitado!
A sensibilidade da Jacy com a filha foi algo de muito refino…e perspicácia!! Louvores a ela.
Espero, que sua mãe encontre, também alguém que possa ajudar o marido a se tratar…existem Centros de Apoio Psiquiátrico em todos os municípios brasileiros, empenhados nesses tratamentos – os CAPS
Muito boa escolha esse tema, que por certo infringem a muitos seres, e prejudicam as relações familiares em muito.
Aguardo a próxima… Abçs fraternos Amigo José…
O limite da sanidade e da loucura é muito estreito.
De longe, todo mundo parece normal, mas com a convivência é que tudo se revela.
Não sei se é possível controlar nossas forças internas, ser um cara zem ou quem sabe um maluco beleza.
Lutar contra o TOC, o tempo todo e sempre se dar conta de que acaba sendo contra a gente mesmo… Confesso que é assustador para mim e fico me perguntando: -“Será que os meus pensamentos algum dia serão só meus”? E sinto um gelo que vem de dentro quando tenho certeza de que os “outros” pensamentos, tão infundados, irreais e escravizantes não são os que teria conscientemente, mas saem, aos borbulhões, da mesma fonte dos outros, que quero conscientemente ter…
E é bem triste. Mas com a ajuda da família, amigos e medicação adequada se torna mais leve. Com certeza. Por isso a grande necessidade de conhecimento desse mal, que precisa ser tratado como uma outra enfermidade qualquer, mas que o preconceito, por se tratar de uma enfermidade “mental”, nos envergonha.
E assim como uma pessoa que tem alguma doença crônica, como hipertensão ou diabetes, por exemplo, que mantendo-a sob controle leva uma vida praticamente normal, o mesmo pode acontecer com um portador de enfermidades mentais. Hoje em dia, até a esquizofrenia, tão temida e debilitante há até pouco tempo atrás, pode ser controlada com medicação adequada e terapia.
Como em tudo o mais, a lição que fica é de que uma dose extra de amor nunca terá efeito colateral e nem contra-indicação.
Obrigada, Bollog. Mais uma vez você, com esse conto, nos fez refletir (e no meu caso, “desabafar”).
Por mais que as ajudas externas sejam necessárias, o apoio familiar é fundamental na ajuda aos portadores de transtornos mentais. Cabe aos familiares promover o encontro do paciente com os especialistas no assunto e de acompanhá-los durante todo o tratamento. As vezes não passam de cargas emocionais temporárias, mas cabe aos médicos e psicólogos a avaliação precisa da causa. Outras vezes, é necessário internamento e de acompanhamento médico diário, mas tudo tem solução nesse avançado mundo de estudos psicológicos. Em todos os casos, o apoio dos entes queridos é de primordial importância e a primeira barreira a ser rompida é a do preconceito.
Acredito que o TOC, puede ser una revelación de vidas anteriores, por eso resulta no encontrarles explicación; lo más importante sería descubrir que esas manias pueden ser una forma de corregir errores cometidos en otras vidas, que nos causaron algún daño en nuestra mente y nuestro espíritu. Creo que debemos seguir nuestros instintos y no hacernos rollos al respecto, coíncido plenamente con el comentário de Eloísio Barbosa. Grande e ser, um maluco beleza
Eu penso que o TOC é como estar sempre conferindo, conferindo e se cansando por isso… Um dia desses eu pensei que se fosse uma “matadora de aluguel” seria daquelas que daria um monte de tiros para “conferir”, levaria uma faca para “tirar a dúvida” e faria um “curso” de envenamento para o defunto tomar depois de tudo (para o caso dos tiros e a faca “falharem”)… Parece brincadeira, mas a gente sabe que é completamente irracional detalhes tão “minuciosos”, mas tem que estar sempre se policiando para não praticá-los.
E por hoje é só, porque “tagarelei” muitíssimo!
Obrigada Bollog!