Lição de Voo
VALENTE
Covarde e traiçoeiro era seu modo de agir naquele árido e esbranquiçado pedaço de chão, chamado de cariri.
Ele já havia afugentado patativas, cauãs e arribaçãs que outrora se abrigavam por entre os galhos e as poucas sombras dos angicos, imburanas e juremas. Com sua cara feia e instinto matador, o animal malvado mantinha todos em alerta.
Ficava sempre posicionado num lugar estratégico, à espreita, aguardando com paciência suas vítimas cruzarem o azul do céu.
Não só o espaço aéreo, até mesmo no solo seco, ele estava sempre pronto para dar seu bote certeiro.
Carancho, como todos o chamavam, pousava imponente, na parte mais alta de um xique-xique ou num galho seco de mandacaru, com seu vistoso solidéu negro sobre a cabeça. A cara avermelhada e aquele temível bico adunco era mais preciso e cortante que uma faca afiada. O longilíneo corpo emplumado, em preto e branco, era erguido por compridas pernas, possuindo nas extremidades garras pontiagudas, usadas para rasgar suas presas.
Cobras e lagartos também não podiam dar bobeira naquele chão ressecado e castigado pela falta de chuvas. Os répteis, pequenos e grandes, calculavam precisamente seus deslocamentos, procurando fazê-los com brevidade e rapidez. Qualquer vacilo naqueles domínios seria o mesmo que se transformar em banquete para o terrível predador, principalmente naqueles tempos de escassez de alimentos.
Aquele enorme empenado era um exemplar das aves de rapina. Ele tocava o maior terror nos raros animais daquele ecossistema da caatinga brasileira.
Algo inusitado estava por acontecer nas proximidades de Lajes, não muito distante do ponto mais elevado do Estado.
Carancho nem desconfiava que seus domínios fossem ser invadidos por um plantel de atletas voadores. Eram pombos-correio que disputavam os 102 quilômetros (em linha reta) da prova de velocidade entre o Farol de Touros e o Pico do Cabuji.
O bando não estava longe dali, mas o líder do campeonato estava à frente, despertando os sentidos de Carancho, que havia detectado seu alvo com sua visão de grande alcance.
De imediato, ele alçou voo bem alto para poder mergulhar com muito mais velocidade de encontro a sua vítima. Para surpresa de Carancho, o inesperado prato apetitoso viajava a quase cem quilômetros por hora.
Embora estivesse focado no regresso veloz, Valente percebeu que havia perigo mais adiante, acelerando um pouco mais.
O pombo voador pressentiu que o inimigo havia mergulhado em sua direção, mas aguardava estar mais próximo para tentar realizar alguma esquiva.
Quando Valente se deu conta que poderia ser abatido, fez uma manobra súbita em pleno ar, dando uma quebrada de asas. Aquilo desconsertou Carancho, que havia perdido a primeira investida.
Enquanto Valente travava uma luta por sua sobrevivência se desviando dos ataques do inimigo, viu o bando passar bem alto em direção ao objetivo final.
A grande vantagem que havia colocado sobre seus concorrentes havia desaparecido com aquela perda de tempo para escapar daquele temível predador. Embora soubesse que necessitava se livrar rapidamente daquelas garras afiadas, sabia que teria que lutar um pouco mais, já que o adversário não desistiria tão facilmente.
No segundo intento, o caçado fora mais esperto, mas o caçador deu início a sua terceira tentativa. Carancho mergulhou novamente, acercando-se o mais que podia. Quando percebeu que o pombo iria quebrar asas de novo, desferiu um golpe certeiro, que fez Valente perder velocidade e altura.
O ataque facilitou o serviço para Carancho, que alcançou e agarrou Valente em pleno voo.
Carancho estava satisfeito com o fim do combate, indo direto ao solo. Ele estava quase sem forças pelo grande esforço empreendido contra sua presa, que agora se encontrava desfalecida e imobilizada em suas garras.
Carancho pousou com sua vítima no chão e finalmente o soltou para poder se banquetear e recuperar suas energias.
Quando ia desferir a primeira bicada, Valente recobrou os sentidos e agiu rapidamente para voar pra longe da morte certeira.
Surpreendido com a fuga, Carancho já não tinha ânimo para uma nova perseguição.
Carancho teve seu orgulho abalado, principalmente porque se deu conta que os olhos da floresta rasteira haviam presenciado sua primeira derrota.
Valente não só dera uma lição no grandalhão, mas também ensinou a vencer aquele inimigo comum.
Valente, já livre, voou bem alto para buscar recuperação na prova.
Sabia que perdera minutos preciosos, mas não iria desistir nunca, principalmente depois de vencer aquele combate terrível.
Como já havia perdido boa parte do seu peso com o desgaste dos noventa quilômetros já realizados, agora estava mais leve, o que facilitava o aumento da sua velocidade.
Aqueles últimos 12 quilômetros seriam decisivos para ele, o que incomodava um pouco eram os ferimentos provocados pelas unhas cortantes do malvado agressor. Verificou que seu sentido de orientação estava ainda mais aguçado e que a anilha de identificação continuava presa à perna, estando perfeitamente intacta.
Como a sorte ajuda aos que lutam, de repente, ventos alísios sopraram na sua cauda com mais força, coisa incomum naquela região, aumentando seu desempenho aéreo.
Depois de um esforço incrível, já era possível ultrapassar o primeiro concorrente. Um segundo grupo de aves estava um pouco mais adiante, o que aumentava a vontade de ir mais rápido, atingindo seu limite máximo de velocidade.
O seu GPS interno dizia que estava muito perto do pouso de chegada, restando a subida até o alto do pico, que está a 590 metros de altura. Aquela última etapa representava um grande esforço na reta final.
Faltando menos de um quilômetro, Valente já se via emparelhado com os demais concorrentes, mas estava praticamente esgotado. Se quisesse ganhar, sabia que necessitava arrancar uma força extra naquele finzinho do evento mais importante para os columbófilos da região do semiárido.
Sentiu de repente que na subida havia ganhado quase um corpo de vantagem, mas não queria correr riscos e acelerou mais o ritmo, sendo o primeiro a atingir o topo do Pico do Cabuji.
O juiz segurou o primeiro pombo a pousar no pico e gritou a inscrição da anilha: número 113 – Valente! O relógio marcador indicava o tempo: 59 minutos e 33 segundos – um novo recorde!
Que vitória incrível e merecedora, além do mais, fora estabelecida uma nova marca na competição.
Depois da entrega do prêmio e das análises posteriores é que todos perceberam que o ganhador, além de vencer a prova, havia também se livrado de algum predador pelo caminho, salvando o grupo de possíveis ataques.
Isto fez maior aquele feito e demonstrou mais uma vez a garra e a vontade de vencer de um pombo-correio.
Ficou claro que o campeão, além de vitorioso, era um valente.
O poeta nordestino, João do Vale, vivenciava toda o desempenho da ave de rapina que é um símbolo de sobrevivência na região. Assim como todo bravo povo sertanejo, o carcará pega, mata e come, pois só assim é capaz de escapar da fome que assola nos longos períodos de estiagem. No texto cabe uma reflexão: a luta pela sobrevivência. A sorte do pombo correio também é devido aos voos altos, longe do alcance das baladeiras (estilingues) que estão sempre a postos nas mãos da garotada, que são habilidosos atiradores. Há sempre o dia da caça e a do caçador, mas dependendo do ponto de vista que favorece a torcida, ambos podem ser vistos como vencedores ou perdedores.
Nossa! Tudo que escreveu foi verdade? Você fez uma narrativa incrível da corrida do Valente!
Depois da minha demissão numa das crises da indústria, fui trabalhar no corte de cabelo para defender o pão da minha família. Rapidamente consegui conquistar uma boa clientela porque tive um bom professor (meu irmão), que já atuava na área.
O Cavalcanti sempre cortou o cabelo comigo e um dia tive a oportunidade de falar para ele sobre uma das minhas paixões. Sou um criador de pombos de competição, o mesmo que é conhecido como pombo-correio. Do meu plantel saíram vários campeões, o que me deixa muito orgulhoso.
Depois de contar muitos fatos e passar dados interessantes para o Cavalcanti, ele me contou que um dia escreveria uma história para homenagear esta minha mania.
Eu não esperava algo tão especial, principalmente porque ele ambientou o conto lá na terrinha dele, no meio da caatinga.
Ficou bom demais da conta, sô!
Agradeço aqui a homenagem que você me fez.
Abraços e volte pra minha barbearia de novo.
A história heroica do Valente ajuda a divulgar este esporte que é oficial em outros países e que vem crescendo muito no Brasil.
O vídeo abaixo é para explicar melhor alguns pormenores da columbofilia.
Abraços a todos.
Puxa, pensei que o Valente não escaparia., torci por ele. História linda e interessante que nos apresenta de maneira singela a vida do pombo correio que foi ttão importante em tempos remotos. O vídeo postado por Jairo Matoso nos mostra como essa vida do pombo correio mudou, também com tanta tecnologia….
A facilidade que temos hoje em nos comunicar é tão grande e quando pensamos em pombos-correio, índios com fumaças ou povos sem nenhum tipo de escrita ou registros nos pegamos com saudades também das longas cartas, dos horários esperados em que os carteiros passavam pela nossa rua e deixavam o que quer que fosse de correspondências (menos contas, claro…). Já imaginou então um pombo desses (vermelhinho e lindo, como o da foto?)
Enfim, sempre perdemos e ganhamos, o tempo todo, em tudo.
A sua história é tão “fofa” que, de verdade, deu vontade de apertar as .palavras!
Parabéns!
E agora “a pergunta que não quer calar”: o barbeiro que o inspirou na história nunca o deixou careca com a animação da “prosa”?
E me lembrei também da música do Moraes Moreira, que fez um grande sucesso e que falava do nosso amiguinho tão inteligente e persistente. Essa música também é direto do “túnel do tempo”…
Obrigada!
Obs.: E os “Caranchos” também tem uma vida triste e solitária. Confesso que sinto muita tristeza pelos animais predadores, incompreendidos, que muitas vezes tem seu habitat destruído e sua sobrevivência ameaçada…
Gisele, obrigadão pelo comentário.
Ainda bem que você gostou também da história do valente velocista alado.
Gisele, sobre meu barbeiro, eu tinha um grande medo quando ele cortava e, ao mesmo tempo, comentava o que estava vendo na televisão. Raramente cometia qualquer errinho, mas, se ocorreu algum, logo o cabelo estava normal outra vez (corto sempre bem curto).
Sobre o “Carancho”, ele é muito solitário, ninguém quer a sua companhia e nunca é bem-vindo.
Segue o vídeo com a música do Moraes Moreira.
Espero que você goste.
O belo texto coloca o percurso da prova de voo do pombo correio unindo o litoral ao sertão, da terra da lagosta a terra do bode, da fartura a escassez de água, do pescador ao vaqueiro e da alegre e sensual praieira a bela e forte sertaneja. Mundos que também se juntam no livro Reinvenção do Descobrimento, no qual, segundo o historiador e escritor Lenine Pinto, aponta que foi na cidade de Touros/RN o local certo do descobrimento do Brasil. Para confirmar sua tese, existe um marco esculpido em pedra, que foi fixado (chantado) no local pelos portugueses. Segundo ele, o Monte Pascoal é na verdade o Pico do Cabuji, que da praia pode ser avistado.
O bem superando o mal contado de forma encantadora.
Sempre torcemos para quem está em desvantagem nas disputas. Aqui não foi diferente, pois o grandalhão se deu mal, diante do esperto pombo correio.
Não sabia que havia provas de competição com estas aves, sabendo somente do quanto já foram úteis nas comunicações.
Pombos correios exerceram papel decisivo em algumas batalhas e já uniram corações apaixonados.
Lindo na guerra e no amor.
“Pombo correio voa ligeiro leve esta carta linda para meu amor”
Ele é como um soldado bombeiro no dever de defesa da vida
todos o admiram e abrem caminho com a certeza da presteza
e emergência de sua missão. Sai pra lá cariri tenho que ir e saiu a rir.