Sivuca e Glorinha Gadelha
FEIRA DE MANGAIO
Quem disse que a inspiração escolhe local e hora pra chegar?
New York foi o cenário de inspiração deste clássico do nosso forró, por incrível que pareça.
Feira de Mangaio retrata fielmente as feiras típicas das cidades do sertão nordestino.
Esta espécie de shopping a céu aberto tem uma grande disponibilidade de produtos, vende-se de tudo, legumes, raízes, frutas, grãos inteiros e moídos, ovos, carnes, embutidos, temperos, doces e chás. Há sempre um tocador de viola, cantando ritmado os versos de sua poesia, na divulgação do seu cordel.
“Fumo de rolo, arreio e cangalha/Eu tenho pra vender, quem quer comprar/Bolo de milho, broa e cocada/Eu tenho pra vender, quem quer comprar/Pé de moleque, alecrim, canela…”
Toda dona de casa sabe onde tem que ir quando quer comprar produtos frescos e mais baratos, vindos diretamente do campo. Aqui em São Paulo é muito comum as feiras de bairro. Cada dia da semana, o evento se realiza num local fixo, já predeterminado, devendo o interessado consultar a programação disponível no site de cada prefeitura.
Recordo minha infância vivendo numa casa na rua da feira. Nosso pai acordava os filhos homens mais velhos, bem cedinho, para ajudá-lo a fazer a compra dos mantimentos. Ele mesmo fazia nosso café da manhã e pedia pressa para não perder tempo. Ele, que gostava de adquirir produtos mais saudáveis, sem agrotóxicos, queria comprar as primícias ofertadas pelos feirantes. Quando nossa mãe acordava, junto com nossas irmãs, já estávamos de volta, com as bolsas cheias de frutas, verduras, ovos da roça e uma boa variedade de grãos.
“Moleque sai daqui, me deixa trabalhar/E Zé saiu correnda pra feira de pássaros/E foi pássaro voando pra todo lugar…”
O feirante começa a armar suas barracas nas primeiras horas da madrugada, por isso é comum trazer mulher e filhos, que terminam envolvidos no comércio ao ar livre.
“Tinha uma vendinha no canto da rua/Onde o mangaieiro ia se animar/Tomar uma bicada com lambu assado/E olhar pra Maria de Joá…”
Não se sabe se o vendedor da Feira de Mangaio ia à vendinha somente para olhar Maria. E, inibido que parecia ser, disfarçava sua admiração tomando uma dose de aguardente, talvez pra criar coragem de fazer um galanteio pra sua musa. De outra feita, creio que ele ia mesmo saborear o néctar da cana de açúcar, e Maria era um estímulo a mais. Como a cachaça é um hábito do nordestino, há sempre um vendedor de pinga, de licor de jenipapo ou de umbu.
“Cabresto de cavalo e rabichola/Eu tenho pra vender, que quer comprar/Farinha, rapadura e graviola/Eu tenho pra vender, quem quer comprar/Pavio de cadeeiro, panela de barro…”
Quem é de outras regiões deve ficar admirado com a pluralidade de uma feira como esta. Ela também se presta a vender itens para montaria, chinelos de sola e de borracha, filtros de água, panelas de ferro, de alumínio e de barro, além de vender querosene e pavio, já que muitos rincões não têm luz elétrica.
“Menino vou-me embora/Tenho que voltar/Xaxar o meu roçado/Que nem boi de carro/Alpargata de arrasto não quer me levar…”
Acabada a feira, o feirante volta pro campo para tocar suas atividades. Muitas vezes, por falta de ter um animal de tração, ele mesmo é que tem que arrastar o arado para preparar a terra para o semear. O chinelo de dedo (Alpargata é a marca, e é comum a troca do produto pela marca) é o companheiro inseparável.
“Porque tem um sanfoneiro no canto da rua/Fazendo floreio pra gente dançar/Tem Zefa de Purcina fazendo renda/E o ronco do fole sem parar…”
Maria de Joá e Zefa de Purcina são expressões comuns usadas para nominar pessoas no Nordeste. Associado ao nome de batismo, segue o genitivo, normalmente referindo-se ao nome da mãe ou do pai da pessoa.
Um sanfoneiro fazendo floreio e uma mulher rendeira não podem faltar numa “feira de mangaio”. Nada está mais entranhado na cultura do nosso povo que estas duas artes.
A sanfona, com o sopro dos foles, enche de alegria a vida das pessoas que vem e vão por entre as barracas dos mangaieiros. Nesta tocada não pode faltar o forró e também o baião, o xote e o xaxado – os ritmos locais.
Autor José Maria Cavalcanti
Declaração do próprio Sivuca:
“Feira de Mangaio” foi produzida no balcão de uma lanchonete em Nova Iorque.
Ali comendo comidas plastificadas, bateu uma saudade imensa das comidas do Nordeste, especialmente da Feria de Itabaiana.
E com as comidas vieram as imagens de tudo que ocorre numa feira bem com a cara do Nordeste, onde tudo se vende e se compra.
A letra foi composta por Glorinha Gadelha, com uma pequena ajuda de Sivuca. O guardanapo serviu de escrita.
Ao chegar no apartamento, Sivuca colocou a música.
E deu no que deu.”
Quando trouxe o LP de Clara Nunes, com a bela interpretação dessa canção para minha casa, utilizei o aparelho 3 em 1, que era do meu irmão mais velho, e, aproveitando a ausência do meu pai, abri o volume na área. A linda melodia logo chamou atenção dos vizinhos que se aproximaram para curtir o som. Percebi naquele instante o poder da boa música na integração social. Passado os anos, adquiri um Video Kê e constatei o quanto todos, alguns com certo estímulo, gostam de expor seus dotes musicais. A feira livre é local multi colorido e de muita liberdade de expressão, visto que a informalidade é seu maior atrativo. Recentemente fui a Touros/RN e fui a banca de um mangaeiro que ofertava chocalho, consegui comprar meia dúzia desse instrumento musical, com sons variados. Ao pendurá-los nos galhos de uma mangueira de meu quintal, consegui reproduzir os sons de uma vacaria, a cada rajada de vento. Parabéns pela bela escolha da música, que em sua letra retrata com fidelidade a pluralidade do que se é oferecido em feira típica do Nordeste.
Essa música é linda, adoro. A letra retrata a feira livre que no nordeste é muito mais rica em detalhes. Achei interessante o comentário do Faustino onde ele relata que a letra foi escrita em um balcão de lanchonete em um guardanapo. O artista tem que aproveitar o momento e a inspiração para expressar sua arte, e nessa letra que inspiração.
Belíssima análise da música que nos faz entender mais os detalhes e a riqueza da letra.
Em meu pen drive para curtir som no carro não falta a Feira de mangaio.
Gente, é incrível esta obra (letra e música) ter sido feita em meio a neve de Nova Iorque.
Só posso acreditar que foi a força da saudade mesmo que bateu forte no fundo do peito.
É porque a inspiração vem com vista, cheiros e sabores.
Glorinha Gadelha compôs muitas músicas, mas esta pra mim é a melhor, principalmente com os arranjos feitos pelo mestre Sivuca.
Adoro na voz da inesquecível Clara Nunes.
Fabuloso!
Esses dois nordestinos arretados deram pra gente este forró gostoso que é a cara do Nordeste.
Um arrasta pé sem essa música não é a mesma coisa, fica faltando algo.
Sivuca e Glorinha, glórias da Paraíba.
eh forrozinho bom demais… também das antigas gosto de Sala de Reboco, Eu Só Quero um Xodó, Cintura Fina… mas hoje tenho simpatia pelo grupo Falamansa.
Pra mim eles puseram sangue novo (pé de serra) nesse ritmo de tirar o folego.
Manda aí uma deles, vou gostar demais.
Colher de pau, pilão de madeira, baladeira, ratoeira, cinto de couro, funil de flande, espetos de ferro, arreios, esporas, sinos, sandália de couro, candeeiro, pegador de brasa, vassoura de palha, boneca de pano, corda de agave, fogareiro, ferrolho, tramela, cachimbo, foice, facão, faca peixeira, bainha, chapéu de palha, pião, carro de lata, pedra de amolar, prato de alumínio, caneca de ágata, grelha… mais uma infinidade de pequenas ferramentas manuais, são algumas das coisas do dia a dia que encontramos na primeira versão de uma loja de utilidades. Os músicos retrataram na canção as nossas raízes culturais nordestinas.
Sivuca, um dos maiores compositores do século. O Brasil muito deveria orgulhar-se desses expoentes em sua terra tupiniquim…
Eternizou-se esse talento…. felizes os que desfrutaram dessa boa música! Ótima e justa homenagem… Namastê José!
Esta música me faz lembrar muito bem o dia em que fui até a Feira do Alecrim, em Natal.
Ainda guardo as fotografias comigo e também o cheiro das frutas, das carnes, peixes, caranguejos, bodes, perus, coelhos, galinhas, enfim, delícias para um paulista que já vira uma coisa parecida com o Alecrim nos mercados de cidades do interior de São Paulo.
A diferença é que os produtos daqui vêm do CEASA e os de lá são dos próprios mangaieiros, pois fazem parte do dia a dia deles, são joias que permanecem guardadas até o dia da feira.
Para se ter uma ideia, vi uma negociação onde dois cabritos eram a mercadoria do negócio. Feita a transação, os bichinhos foram parar dentro do porta-malas de um opala e o mangaieiro saiu chorando, se arrependendo talvez pelo fato de ficarem aprisionados os bichinhos.
Glorinha Gadelha grande parceira do Sivuca. A minha grande admiração pela pessoa e artista que voce é.
Uma das coisas que acho mais bela nas artes é a descrição da vida de um povo através da sua cultura e a capacidade de eternizar essa cultura a partir dela própria.