Conto Potiguar
SALTO AO PÔR DO SOL
Aquela bela imagem de 1972, agora digitalizada, parecia eternizar-se na tela do PC.
Sem muito esforço, reconheço o menino descalço a percorrer a velha rua dos trilhos, com seus casarões antigos, verdadeiros guardiões de um tempo em que toda a vida comercial da capital circulava por ali.
Noutras vezes, a imagem me conduz das ruas da Ribeira até o encontro do rio com o mar.
Pelos arcos da Rampa, meu olhar contempla ao longe o Forte dos Reis Magos.
Ali perto, um verdadeiro show se dava sobre as águas do Potengi. O dourado do pôr do sol parecia ser o mais lindo do mundo, por entre os panos brancos das velas que flutuavam às margens do Canto do Mangue – o popular mercado de peixes.
Inúmeras vezes, aquele fora o palco das minhas diversões, junto aos amigos de escola. Uma coisa era comum, não porque fosse o calor de fevereiro, nossas fardas, sempre atiradas ao lado dos congas e das mochilas, assistiam aos nossos refrescantes mergulhos daquela espécie, hoje rara, de meninos de rua.
Subir para saltar da popa ou da proa das embarcações era nossa curtição. O Monalisa e o Stela, por serem barcos de cascos mais lindos e coloridos, eram os nossos preferidos.
Mas minha maior façanha ainda estava por vir. Este feito tinha a ver com aquele gigante que acabara de aportar, após cruzar com dificuldade a Pedra da Bicuda.
Era o maior navio que eu já tinha visto. Na sua lateral, quatro grandes letras se destacam: HOPE.
Aquela seria uma visita especial, e o costumeiro bandejão, servido em outros navios, ficaria para uma outra feita. O objetivo principal era vencer o desafio que os amigos me lançaram.
Para realizá-lo, foi feito um plano, no qual eles teriam que tomar parte, pois disto dependeria o sucesso daquela aventura, preparada como se fosse uma operação de guerra.
Enquanto eles distraiam a atenção dos marujos e dos cozinheiros, eu escapei do grupo, indo parar no convés do navio.
Alcancei a corda que levava até um dos barcos laterais e, de lá, lancei-me verticalmente ao rio.
Aquele grito; “- Homem ao mar!” e o toque da sirene fizeram com que todos corressem para ver o que havia ocorrido.
Todos aguardavam ansiosos pelo reaparecimento do corpo na água.
Quando apontei fora, todos gritaram e aplaudiram, principalmente meus amigos, que não acreditam que eu tivera a coragem de saltar de tão alto, burlando toda o esquema de segurança do navio americano.
O que na verdade eles nunca souberam é o que realmente ocorreu na hora H.
Depois que eu me certificara que ninguém cuidava da minha presença por ali, subi por uma corda e depois desci por outra até chegar a um dos botes salva-vidas. Um grande medo de altura me invadiu pela primeira vez. De repente, meu corpo gelou e, momentaneamente, fiquei desnorteado. Meus olhos se fecharam e me dei conta que passara a flutuar em queda livre.
Com a velocidade e o aumento do peso corporal, o impacto foi terrível contra a água. Sorte que havia caído em pé, e a sensação da água fria me fez recobrar os sentidos, após haver descido mais de sete metros.
Nadei contra a corrente até o Clube Náutico e saí pela porta da frente, como se nada tivera ocorrido.
O reencontro com a turma foi incrível, todos eles me abraçaram e festejavam o maior de todos os saltos. Aquilo foi para mim uma afirmação dentro do grupo, já que aquele era o meu primeiro ano de escola.
Tais cenas marcantes da minha infância são imorredouras, desatadas das entranhas do passado por apenas um clique de um registro fotográfico.
É incrível como uma imagem pode mexer tanto conosco.
Linda historia, tempo de inocência onde não havia maldade nas pessoas, não mediamos consequencias e sim divertimentos.
Me enchi também de saudades dessa época. Foi no Rio Potengi que aprendi a nadar entre subir e saltar dos barcos de pesca. Numa lata juntávamos os siris que facilmente capturávamos usando apenas vísceras de peixe. No trapiche, as imensas cordas dos navios serviam de ponte para incrementarmos os nossos saltos. Bigode, filho da pesca, conhecia todos os homens do mar e sempre conseguia algum pescado. Era na cozinha do bar do pai de Salício que tudo era cozido. Saboreávamos nossos frutos do mar acompanhado de refrescantes Dadás. Uma aventura que gostávamos de fazer era quando o Francisco estava ajudando o pai na condução do barco de passageiros na travessia Bairro da Ribeira a Praia da Redinha. No Pindaré, sempre cheio, cabia vinte passageiros, mas o pai de Francisco nos deixava ir junto a área das bagagens. O obstáculo maior de tomarmos banho na Rampa era passar pela vigilância dos soldados da Aeronáutica que cuidavam daquele antigo aeroporto de hidroaviões. O Iate Clube era espaço para uma classe privilegiada da sociedade e o próprio glamour do local inibia nosso acesso.
Hoje o Iate Clube abre suas portas para apresentações culturais e o local oferece aos visitantes shows com atrações de cantores da terra, emboladores de cocos, músicos instrumentistas e seresteiros, tendo como cenário o belo pôr do sol do Potengi. O espetáculo natural acontece próximo das dezessete horas e quarenta minutos e um saxofonista, dentro de uma embarcação em movimento, promove a trilha sonora com músicas clássicas. Tudo é muito belo e o ponto alto é quando todas as luzes se apagam e uma flautista toca a Ave Maria enquanto, em todas as mesas, pequenas velas eletrônicas brilham. No local, além de contemplar os belos veleiros podemos desfrutar do visual da ponte estaiada Newton Navarro. O belo projeto arquitetônico promoveu a união das duas margens e a aposentadoria das embarcações de transporte de passageiros. Como diz Caetano Veloso: …é a força da grana que ergue e destrói coisas belas…
O Projeto HOPE “Health Opportunities for People Everywhere”, isto é, “Oportunidade de Saúde para o Povo em Todas as Partes”, é uma organização internacional de cuidados à saúde, fundada em 1958.
Este grande projeto de ajuda humanitária, depois de dez meses em Natal, realizou 1307 cirurgias e 6200 atendimentos. O navio-hospital HOPE, após um período intenso de trabalhos, deixou o Porto de Natal no final de 1972, às 14h30, rumo a Baltimore, nos Estados Unidos.
Muitos natalenses se envolveram com o projeto, inclusive na aprendizagem de novas técnicas cirúrgicas e atendimento hospitalar.
Quem viveu a Ribeira se acostumou com as idas e vindas dos grandes navios a zarpar e chegar no Porto de Natal.
Trabalhei muitos anos no comércio do bairro nos anos 70 até migrar para o ramo da construção.
Não esqueço da chegada do Hope a Natal. A embarcação que não trazia mercadorias e sim esperanças para uma parcela sofrida da população.
Como tinha um grande calado, os técnicos diziam que a dragagem que fora feita no rio ainda não permitiria a entrada do navio-hospital que chegava para um período de importante desenvolvimento de trabalhos médicos em Natal.
Muita gente correu pra orla. A multidão apreciava o imenso e belo navio branco no mar que aguardava com ansiedade sua atracagem no porto do rio Potengi.
Teria que vencer primeiro a Bicuda (a pedra temida por todos os comandantes de navios) e os bancos de areia. Os técnicos diziam que o navio encalharia antes de chegar à plataforma de atracagem.
Houve uma grande celeuma entre os técnicos e aqueles que conheciam bem o leito do rio como a palma da mão. Os primeiros queriam escavar mais as margens, já os mais experientes diziam que o navio passaria, desde que fosse conduzido por um condutor antigo do Prático.
Coube ao mais experiente de todos realizar a façanha.
Criou-se muita expectativa em torno disso nas Docas e nos meios de comunicação. Muitos ansiavam o início das atividades junto aos hospitais e com a UFRN.
Finalmente, lá estava aquela espécie de herói potiguar no comando da operação e, sentado na proa da embarcação vermelha, gesticulava e apontava passo a passo o caminho a seguir.
Não deu outra, o HOPE chegou tranquilamente ao porto.
A alegria foi geral e muito se comemorou naquele dia.
Meu pai, que era formando de Medicina, muito falou do HOPE. Aquela visita do navio-escola ajudou muito a pessoas que a medicina local não encontrava solução para seus problemas. Foi muito positivo também no avanço de técnicas cirúrgicas e novidades de procedimentos diversos.
Os estudantes de medicina e de enfermagem ganharam muito com esta passagem. Foram dez meses intensos de trabalho e de oportunidade para transmissão de novos conhecimentos.
Este vídeo registra o exato momento da chegada. Acho que pouco se guardou desta visita dos americanos a Natal.
Cavalcanti, muito interessante reviver a infância e as amizades daquela época.
Guardo fotografias que de vez em quando me fazem rememorar tempos bem vividos, inclusive dos bancos escolares.
Pena que não sei contar e traduzir em palavras algumas daquelas aventuras, mas ela rodam na minha cabeça ainda hoje.
Esta que você nos contou é muito interessante mesmo e ainda traz um fato histórico da sua cidade.
Bacana saber que um trabalho humanitário atingiu tantos necessitados. Soube que eles foram a outros estados brasileiros, realizando também o mesmo feito.
Parabéns a eles por esta digna iniciativa que muito engrandece o ser humano.
A magia da fotografia é essa, nos levar a tempos e momentos vividos que ficarão para sempre na memória.
Lembrar de histórias da infância é muito gostoso e traz muitas saudades.
Essa história me lembrou também dos tempos em que vivi em Mangaratiba onde eu e meus amigos saltávamos dos barcos e da ponte ao mar.
Muito interessante saber da história do navio do projeto HOPE.
O lindo vídeo apresentado, ao final da história, realça mais ainda a beleza da linda e encantadora Natal.
O projeto HOPE trouxe esperança a milhares de crianças que iriam passar o resto da vida com uma deformação na face. A cirurgia de correção estética de Lábios Leporinos foi o maior legado deixado naquela expedição humanitária, que viaja pelo mundo realizando intervenções cirúrgicas e promovendo intercâmbio de experiências médicas.
O Bairro das Rocas é um dos mais antigos de Natal. Suas ruas levam nomes de santos, como se fosse para amenizar a falta de estruturas básicas que tanto penalizaram aquela comunidade carente. Morei na Rua São Sebastião, mas passei a minha infância perambulando entre os outros santos: São Francisco que chamávamos de rua da lua, São Pedro, rua da vala, São João, que era a principal e São Jorge, onde jogávamos bola. No Rio Potengi, uma boa faixa de terra foi desprovida de mangue para poder ser instalado a capitania dos portos, as companhias de pesca, os correios, os clubes de remo, o cais da Tavares de Lira, o porto, o moinho Dias Banco, a distribuidora de botijão de gás, o trapiche, a Rampa (antigo aeroporto), o Iate Clube, o quartel do Exército e o Círculo Militar, que era o balneário dos homens de farda. No intervalo das construções surgiram duas comunidades ribeirinhas, Passo da Pátria e Maruim. Entre o Trapiche e a Rampa ficou uma pequena faixa com a vegetação nativa dividida pelo entre e sai dos barcos de pesca. O Canto do Mangue era a alternativa que tinham os pequenos barcos a vela de trazerem o produto da pesca direto ao centro consumidor do pescado. Os frutos do mar eram expostos em balaios ou espalhados em mesas improvisadas de madeira que formavam uma pequena feira. Aos poucos foram sendo instaladas revendas especializadas em compra e venda dos produtos, o mercado público dos pescadores e uma fábrica de gelo. Sendo um local de grande movimentação de dinheiro, surgiram também os bares, as casas de drinques e de jogos de azar. Nas segundas feiras, a Rua São João parecia um shopping ao ar livre, pois havia uma grande concentração de pessoas circulando entre a maior feira livre da capital, o mercado público municipal e o Canto do Mangue com sua feira e o mercado especializado na venda de pescados. Assim como todos os meus amigos, entre saltar dos barcos, mergulhos, caldos e muitos goles d’águas aprendi também a nadar nas águas salobras do Potengi.
Quando criança a inocência, a vontade e a alto afirmação nos levam a ações impensadas quase insanas, as vezes com traumas eternos.
Me lembro que íamos, eu, Macarrão e Álvaro ao Lago Nelão nadar. Macarrão não entrava, pois não sabia nadar. Da caçamba da Kombi pulávamos no lago. Macarrão nos seguiu depois de muito relutar. Passaram-se eternos 15 segundos e cadê o Macarrão? Saltamos os dois para ajudar, sorte que mergulhei debaixo de suas pernas e ele subiu nos meus ombros e Álvaro o alcançou.
E do fim de tarde animado só sobrou a lembrança que nunca se apagou de nossas mentes e nem do Macarrão que nunca mais nadou e que naquele dia chorou todo molhado, querendo por fim esquecer tal malfadado ato.