Galos, Noite e Quintais

belocanavial

Cena Rural – Engenho de Cana-de-Açúcar

 

BELCHIOR

 

Galos, Noites e Quintais

 

Quando eu não tinha o olhar lacrimoso,

que hoje eu trago e tenho

Quando adoçava meu pranto e meu sono

no bagaço de cana do engenho

Quando eu ganhava esse mundo de meu Deus,

fazendo eu mesmo o meu caminho,

por entre as fileiras do milho verde

que ondeia, com saudade do verde marinho

Eu era alegre como um rio,

um bicho, um bando de pardais

Como um galo, quando havia

quando havia galos, noites e quintais.

Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo

o mal que a força sempre faz.

Não sou feliz, mas não sou mudo:

hoje eu canto muito mais

Chico Anísio confidenciou para o mundo sua saudável pontinha de inveja por não ter sido o autor dessa letra que deu vida a uma música de beleza ímpar: Galos, Noite e Quintais. Fiquei maravilhado, ao mesmo tempo em que dedilhava com meus botões, imaginando o intraduzível orgulho de Belchior, que estava na plateia, escutando esta declaração do humorista mais famoso do Brasil. Claro que, depois que Elis Regina gravou Como Nossos Pais, no disco Falso Brilhante, Belchior já havia ficado famoso, não necessitando dessa “forcinha” do Chico, mas, Anísio não pôde conter sua generosidade e desaguou esse tremendo elogio para o autor de Velha Roupa Colorida.

Essa música, Galos, Noite e Quintais, fez parte do seu terceiro LP, mas foi, há exatos 40 anos, que o canto torto e grave de Belchior ecoou mais forte, alucinando seus inúmeros fãs. Era meados da década de 70, que marcou o aparecimento de vários outros artistas, todos muito talentosos. Diferente dos primeiros compactos, foi ALUCINAÇÃO, lançado em 1976, que marcou imensamente a carreira do cantor e compositor cearense.

Assim como Chico, essa também é parte da história de muitos nordestinos. Quem foi criado pelo litoral do Nordeste, que é permeado de canaviais e milho, não escapou de viver correndo em torno do milharal e das fileiras intermináveis de cana-de-açúcar. Memórias relacionadas ao ato de chupar os roletes de cana e viver em meio ao bagaço da cana de engenho são uma constante, além do mundão das águas verdes.

Recolher-se à infância feliz, como processo de fuga frente a algum dissabor, é algo muito recorrente. É essa infância querida que Belchior retoma para não sofrer tanto diante de uma desilusão. Este tipo de revés, do tipo doído, que tritura qualquer um em pedacinhos, é tão forte que derruba o mais forte dos homens.

Sorte quem tem algo gostoso para relembrar e se apegar, assim ameniza a dor: “Quando eu não tinha o olhar lacrimoso/que hoje eu trago e tenho/Quando adoçava meu pranto e meu sono/no bagaço de cana do engenho…”. Provando a felicidade que havia na meninice, ele completa: “Eu era alegre como um rio/um bicho, um bando de pardais”.

Belchior não só fala do cantos dos pardais, ele também nos diz do canto do galo. Galo que tem a ver com noite, visto que ela só termina quando dos seus primeiros cantos. Nas cidades, quase nunca se escuta esse cantar matutino, talvez pela ausência dos quintais, áreas territoriais do galo. Quem mora em apartamento tem como quintal a varanda, é a parte do imóvel que mais se aproxima daquela querida lembrança de um prazeroso quintal.

Tudo na letra poderia continuar lindo e perfeito, MAS…  veio o tempo negro e, à força, fez comigo/o mal que a força sempre faz/Não sou feliz, mas não sou mudo:/hoje eu canto muito mais…”.

Esse revés mudou o quadro de alegria da sua vida, por isso, como um pássaro engaiolado, ele prefere cantar para não chorar.

Autor: José Maria Cavalcanti

galosnoiteseq