Ilha da Marambaia
Padre Gerardo e alunos da Marambaia
REGALIAS DE COROINHA
Acostumado com as mordomias de morar em Copacabana e ter chofer particular para me levar e trazer para a escola, de viver cercado de brinquedos e roupas finas, um revés financeiro fez despencar meu pequeno império, indo parar na doce, pacata e encantadora cidade praiana de Mangaratiba.
E nem desconfiava que outro infortúnio maior ainda estivesse por vir para mim, meu pai e irmãos. Após pouco tempo vivendo no Hotel Rio Branco, de propriedade dos meus tios, logo após meu aniversário dos doze anos, perdemos a pessoa mais especial de nossas vidas. Um ataque fulminante levou minha mãe, deixando-nos aos cuidados de nosso querido pai.
Este fato foi determinante para mudar meu rumo e de meus irmãos, que eram na época bem pequenos. Impossibilitado de cuidar de mim adequadamente, meu pai me encaminhou para estudar na Escola Técnica Darcy Vargas, na Marambaia, enquanto meus irmãos menores seguiram depois para viver com outros tios aqui em Buenos Aires.
Aquilo que a princípio parecia ser algo a mais de ruim naquele caos que minha vida havia se transformado, levando o restinho da tranquilidade que eu tinha, depois se transformou numa verdadeira aventura. A escola reunia pessoas de várias origens de todos os rincões do Brasil. Isto foi ótimo para minha formação e assim aprendi a lidar com outras culturas e fiz muitos amigos.
A rotina era quase militar e aprendíamos tudo sobre a vida marítima. Tínhamos todas nossas necessidades financiadas pelo estado: alimentação, alojamento, material escolar e assistência médica. Até hoje lembro com saudades daqueles bons tempos e do rosto de cada um dos professores. Na Marambaia, aprendi muito e ganhei experiências incríveis, que até hoje me são úteis.
Como ficávamos confinados, em regime de internato integral, a saudade dos familiares e dos amigos deixados lá fora apertava o coração, causando desespero para muitos. As visitas dos entes queridos eram muito regradas, ocorrendo a cada seis meses, quando um barco atracava na ilha no mês de julho, e a escola era aberta para receber os visitantes em clima festivo.
Sob estrita vigilância, quase tudo era permitido naqueles dias tão aguardados. Alguns faziam piqueniques nas praias; outros passavam o tempo fotografando tudo que podiam, e aquele tempo parecia não ter fim. As despedidas no final da festa eram as mais tristes, pois somente em dezembro teríamos contato familiar novamente, na maioria dos casos.
Enquanto amadurecíamos, pois éramos todos jovens na faixa do 12 aos 15 anos, chegavam aos nossos ouvidos as notícias sobre a vida política do Brasil, muito agitada naqueles anos em que havia muita rebeldia de estudantes pelas ruas do Rio de Janeiro, enquanto a Jovem Guarda explodia, juntamente com os Beatles, Rolling Stones, Elvis Presley e outros ídolos do rock.
Para extravasar tanta energia, restava nos rebelar contra tudo que era proibido naquela estrutura fechada da escola, buscando muitas maneiras de nos opor ao que era estabelecido, tais como: horários rígidos, educação física puxada, arrumação da própria cama e também dos uniformes, além de outros controles feitos por rigorosos inspetores. Namorar com as alunas, que eram moradoras da ilha e estudavam em regime de externato, nem pensar, pois isso era terminantemente proibido. Mas flertar, mandar bilhetinhos, soprar um beijinho, tudo fazíamos como forma de irreverência. Nisso éramos bem parecidos com os estudantes do continente.
A verdade é que sobrava pouco tempo para outras coisas, pois o estudo era muito intenso. Aprendíamos todas as técnicas de construção, operação e manutenção de embarcações nas aulas de Marinharia; tínhamos também Artes Industriais, Artes Gráficas, Português, Literatura, História Geral, Biologia, Química, Desenho, Álgebra, Aritmética, Música e outras disciplinas próprias de uma caserna. Ainda tinha de sobrar tempo para dar lustre na fivela do cinto e engraxar os sapatos. O desfile nas ruas de Mangaratiba, por ocasião do sete de setembro, era muito aguardado, pois era uma das oportunidades de termos contato com a vida social de uma cidade. Os horários dos primeiros dias do mês da comemoração da independência eram parcialmente destinados aos treinamentos da tropa. Todos os alunos desfilavam com bonés brancos nas cabeças e também uniformizados, como um verdadeiro aprendiz de marinheiro.
Além da grande vontade de desfilar pelas ruas, desejávamos ardentemente ser coroinha do Padre Gerardo, que também era excelente pintor e escultor, vivendo numa casa confortável da ilha.
O padre gozava de todo o respeito religioso, embora houvessem comentários maldosos sobre sua vida particular. A Igreja de Nossa Senhora das Dores ficava sempre de portas abertas à espera de alunos para prestigiarem as missas, de segunda a sábado. Os domingos eram destinados às missas em outras ilhas, onde houvesse comunidade de pescadores e outros moradores. Assim, no primeiro dia da semana, saía o Padre Gerardo de barco, acompanhado de dois coroinhas escalados, para as cerimônias em outras comunidades. Uma das ilhas mais visitadas era a de Jaguanum, que está localizada nas proximidades de Itacuruçá.
Em torno de 10 a 12 alunos formavam o corpo de coroinhas. Além do Hino Nacional, o Hino à Bandeira, a música Cisne Branco e a Canção do Expedicionário, também tinham que aprender as atribuições daquele outro ofício. Para serem aceitos, os rapazes necessitavam decorar toda a liturgia da missa, cuidar das vestes especiais, preparar a mesa, servir vinho ao padre e saber a hora certa de tocar o sino, que se dava após o cerimonial da consagração.
Lembro até hoje que, depois que fui dado como pronto, fui finalmente ordenado pelo padre como um dos doze eleitos. Aquilo para mim foi motivo de muita alegria, pois finalmente iria gozar também das regalias que desfrutavam os coroinhas. Assim também passei a integrar a escala de serviços religiosos, que era bem melhor que a da faxina dos banheiros ou de limpeza das áreas internas e do pátio.
Dentre os fatos inesquecíveis associados à figura do Padre Gerardo, um fato marcante se deu quando ele desconfiou que estava havendo algo de errado na escalação dos coroinhas. Com seu senso de justiça mais aguçado, percebeu que um dos alunos estava sendo beneficiado nas saídas dominicais. O problema só poderia estar ocorrendo por culpa do coroinha mais antigo, que era o responsável pelo controle dos escalados. Como qualquer tipo de conduta para ludibriar superiores fosse motivo de expulsão da escola, começou a investigar o caso.
O escalante logo se desculpou do ocorrido com a explicação de que um dos rapazes havia ficado doente, tendo de substituí-lo pelo que estava disponível na ocasião. Fato que se repetiu uma segunda vez pelo mesmo motivo. O padre acatou com desconfiança as justificativas, marcando audiência com cada um deles separadamente para ver se haveria alguma contradição. Passou a agir com eles como um investigador, fazendo uma espécie de acareação.
Ao final da última audiência, não apurou qualquer irregularidade, mesmo tendo quase certeza que ali havia algo de errado.
Depois de encerrado o caso, nosso pequeno grupo festejou porque conseguimos mais uma vez dar ajuda a um dos amigos que tinha a mãe muito doente em Jaguanum, evitando que ele fosse expulso da Marambaia.
O padre Gerardo na verdade fez vista grossa, pois percebeu naquelas atitudes dos coroinhas princípios de lealdade e companheirismo, valores muito maiores que iriam selar aquelas amizades para toda a vida.
Pelas muitas histórias vividas na Marambaia, um antigo entreposto de escravos até 1888, é que todos aqueles que compartilharam daquela mesma experiência sentem motivos de sobra para se reunir sempre, no intuito de reviver um período que fomentou nosso caráter e nos ensinou a ser como uma grande família.
Autor José Maria Cavalcanti
Se você já viveu experiências em colégios internos, deixe seu COMENTÁRIO!
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É muito bom ler textos que nos remetem aquilo que antigamente era transmitido em nossas escolas: educação cívica, religiosa e orientação educacional. Sem descuidar dos ensinos básicos, os orientadores nos instruía a visitar regularmente a biblioteca e a não descuidar dos aspectos de higiene. Havia visitas ao consultório odontológico, campanhas de vacinação e aulas de Educação Física. Época das normalistas e das tias/professoras que se importavam em zelar com a nossa aparência: postura, cabelos penteados, olhos e ouvidos limpos. Educação e respeito, formaram essa geração que sabe entrar e sair de todos os ambientes, pois aprenderam a perceber o erro e o exato momento de “se mancar”.
Pedro, este periodo de sua historia foi muito especial e que ate hoje permeia sua memoria de uma forma inesquecivel. Este texto, uma forma de presente literario, busca reproduzir momentos marcantes da sua vida na Marambaia.
Muitas outras aventuras inesqueciveis voce viveu em Magaratiba tambem, mas sem duvida que as experiencias da Escola Darcy Vargas ficaram registradas para sempre.
Feliz Aniversario nesse dia especial!
Da sua Martita
E tudo parece muito rígido e desnecessário. Só enxergamos tarefas e muita cobrança. Coisas que eram feitas por nossa mãe passa a ser realizado por nós: lavar roupa, varrer, cobrir cama, limpar banheiro, ciscar terreiro, capinar e cuidar das plantas e hortas. Aí percebemos que podemos fazer tudo direitinho e tudo passa a ser incorporado em nosso dia a dia, rotineiramente. Com o passar dos anos, percebemos que tudo que foi feito serviu para nos deixar mais alicerçados para enfrentarmos as outras etapas da vida. Esse texto enaltece o referencial de uma boa base educacional. Belo exemplo.
Este belo texto é uma bela homenagem a todos que viveram lindos momentos na Ilha da Marambaia. Tal comunidade tem uma história que remete ao século dezenove, época do tráfico de escravos:
“A ilha era tida como ponto de engorda de um poderoso escravocrata. Ele era senhor de 6.000 escravos. Então ele usava a ilha para que os escravos se recuperassem da viagem e depois distribuía esses escravos entre as 25 fazendas que ele tinha no litoral sul do Rio” conta Vânia
O poderoso escravocrata a quem Vânia se refere chamava-se Joaquim José de Sousa Breves e, segundo os moradores de Marambaia, ele doou as terras da ilha aos escravos que lá habitavam.
Vânia afirma que “como era de praxe, o Sr. Breves doou estas terras de ‘boca’, oralmente, mas como não ficou nenhum documento que comprovasse isso, tudo indica que a ilha foi hipotecada”.
No ano de 1905, a Ilha de Marambaia passou a ser propriedade da União.
Em 1939, Getúlio Vargas doou a ilha para a Fundação Abrigo Cristo Redentor, que instalou no local a Escola de Pesca Darcy Vargas.
Os moradores mais idosos de Marambaia têm boas lembranças do período de existência da escola de pesca e afirmam que, com ela, as condições de vida dos moradores melhoraram bastante.
O texto me faz lembrar da época dos grupos escolares. Blusa branca de botão e saia plissada na cor azul marinho. Não havia essa mania atual de quebrar as “carteiras”, nem de riscar paredes, pichar muro, quebrar bebedouros ou destruir banheiros. Recebíamos caderno com a bandeira do Brasil e os hinos impressos na capa. Cabia aos nossos pais comprar o lápis grafite, a “lapiseira” para apontar o lápis e a borracha que se encaixava na outra extremidade do lápis. Os trabalhos escolares eram feitos em papel pautado. Nossas travessuras tinham que ser bem feitas, pois, caso contrário, passávamos pelo “castigo”, que consistia em ficar em pé de frente para turma ou para a parede da sala, e ali ficávamos até o final das aulas. Ir para a sala da diretoria era o pior, pois implicava em esperar a chegada de nossos pais ou responsável. Na hora do recreio, depois da merenda, brincávamos de amarelinha e “queimada”.
Até hoje recordo de minhas amigas de classe e do nome de algumas professoras.
Muy buen relato del pasado de mi querido primo Pedro, quién también pasó mucho tiempo junto a nuestra familia en Buenos Aires. Quiero desearte en este bendecido lugar de grandes amores e historias que nos enseñan a ser mejores, lo mejor para vos y que te quiero mucho; llevándote siempre conmigo en el espíritu y en todos los momentos en que resplandecía tu alegría en mi alma, en esos tiempos sin rumbo de mi vida, y traías contigo la luz, que me alejaba de la penumbra que yo sentía en mi hogar
Boa história sobre o Colégio Darcy Vargas e o Frei Gerardo. Você escreveu tomando meu personagem, achei muito bom. O Frei era: alemão, médico, pintor e escultor, ex-oficial do Exército durante a segunda guerra mundial, prisioneiro de guerra e fugitivo de um campo de prisioneiros da Sibéria, entre várias medallhas, tinha a sua Cruz de Ferro. Naquela época se rezava a missa em Latim e de costa para os fiéis. Era um monge da ordem dos Franciscanos. Lembro-me da despedida que foi oferecida na nossa Escola com nossas autoridades, esse dia ele estava impecável, sóbrio, bem lúcido e emocionado. Passaram alguns slides de várias estatuas feitas por ele em cidades de seu país natal. Ficamos impresionados e logo com saudades…
Mestre: estive me comunicando com a Marta e agradeço a correção do relato do TINTUREIRO. Gostaria que você pudesse publicá-lo neste espaço.
Com respeito a este texto, “Regalias de Coroinha” gostaria de traduzi-lo ao castelhano, como farei com o “Tintureiro também”.
Se esta tudo legal, avise-me.
Um abraço.
Pedrinho.
Excelente texto!
Parabéns!
Principalmente depois de ler TINTUREIRO.
Mario Carlos
Ótimo texto!
Passei alguns anos da minha vida nessa ilha, porém em situação diferente.
Eu era militar, contudo meu Pai também estudou nessa mesma ilha e gostaria de saber quais foram os anos que você passou na Marambaia.
Parabéns!
Cristiano Oliveira.
Cristiano, obrigado por visitar o espaço do Blog do Bollog, criado para a troca de experiências de vida e para servir de aproximação entre pessoas.
É com grande alegria que converso com você que, assim como meu cunhado, Pedro Carlos Fernandez (vide comentário dele aqui antes do seu), também viveu um período muito especial naquele recanto paradisíaco, em meados da década de 1960. Creio que no mesmo tempo em que seu querido pai estudou na Escola Darcy Vargas e talvez eles tenham sido companheiros de várias aventuras na famosa Ilha da Marambaia.
Ao estar em Buenos Aires algumas vezes, escutei da boca do Pedro algumas vivências dele na ilha (creio que de março de 1966 – 1968) e por isso fiz uma surpresa para ele ao publicar aqui “Regalias de Coroinha”, no mesmo dia em que ele completava mais um ano de vida.
Ao mexer com o baú de memórias do meu cunhado, ele ficou tão motivado que escreveu, em 11/11/2011, um lindo texto intitulado TINTUREIRO (referenciado aqui também pelo irmão dele Mario Carlos Fernandez), o qual foi publicado na página dos amigos da Marambaia http://tempomarambaia.blogspot.com.br/2011/11/tintureiro.html
Assim esclareço que apenas sou um contador de histórias e brinco de escrever, já que considero esta prática um grande exercício mental, principalmente depois de estar retirado.
Grande abraço e volte sempre!
José Maria Cavalcanti
Os barcos existentes na Escola Tecnica Darcy Vargas, no ano de 1973 e 1964, eram: Tintureiro, Condecar, Getulinho e Almirante.
Gostaria de ver fotos da ilha.
que bom lembrar toda essa historia eu estive la de 61 a 67 aprenddir musica com o grande maestro camargo muito legal
Tempos maravilhosos de minha vida.Fui aluno nos anos 1960.Fiz parte da banda de música com maestro C amargo.
Tinha o maestro, (não recordo o seu nome) e dentre os alunos tinha o Tião, que tocava pistão. Eu tentei “riquita e clarinete”, todavia não fui avante.
Eu viajo nos seus textos… São todos incríveis.
A enfermaria, que tinha o comando das irmãs freiras, era muito disputada, sobretudo porque a comida de lá, era diferenciado, a partir dos pães, que não eram os mesmos que eram servidos aos alunos. As refeições, também tinham destaques, posto que, era um atrativo, para que a permanência de quem por lá estivesse doente, se estendesse por alguns dias. A quarta-feira, era o dia em que passavam filmes, sendo que por capitulo e não em completo, o que provocava em todos os alunos, maior disciplina, para que não os perdessem, visto que nem sempre os cuidados eram preservados, e a não presença na sessão cinemografica, ficava de castigo, em um quarto escuro e que só poderia sair de lá, após o término dessa sessão. As motivações que originavam essas punições, eram por conversações no refeitório e mau comportamento no dormitório, etc.
Fui aluno da ETDV no período 1957 a 1962, o diretor da época era Antônio Moreira Sampaio Filho e o prefeito Manoel Bastos. Boas recordações
Eu vivi algum tempo na ETDV,nós anos 62,63,64, comecei a aprender música com o maestro Sta Rosa, fazia retleta aos domingos na quadra da Ilha, festa de Santana em Itacuruçá.quando íamos embora, tocávamos o dobrado 4dia de viagens com o barco Condecar em movimento.Era muito lindo.Isso nunca sairá de quem passou por esses momentos maravilhosos, Saudades desses tempos.