Noite de Natal

 

sensibilidade

 

POR UM MOMENTO

 

A gente nem desconfia o quanto de saudade pode causar uma ausência.

Ali na parede, agora nua, ficou de resto só o contorno da moldura. Marca do bater de luz e da circulação de pó do fabrico das peças de pedra sabão do vizinho.

Só Deus sabia o esforço que fazia para retirá-la do alcance da vista, mas a memória insistia em não querer apagá-la.

No primeiro momento em que tudo se deu, agarrei-me ao que podia. Às vezes achava forças para reagir, mas nem sempre me vinha socorro. Era um esforço mais que necessário para não sofrer tanto.

Também tratei de fazer sumir o pequeno frasco que restou daquele seu cheirinho inconfundível. As roupas guardei-as num velho baú, já que ainda não tivera vontade para me desfazer delas.

Demorei a descobrir que aquela figurinha falante não ocupava só seu quarto. Há um pouquinho dela em cada coisa deixada. Na verdade me dei conta que ela vivia em recantos da casa que eu nem imaginava.

Quando a saudade apertava o peito, causando dor, clamava muitas vezes baixinho a Deus. Suplicava a Ele para ela voltar pra mim. Às vezes xingava ou blasfemava contra tudo, inclusive contra Ele. Depois me arrependia, dobrava os joelhos para me sentir perdoado.

Não tinha forças pra recomeçar porque não queria substituí-la por ninguém mais. Ficava tão preenchido com o grande vazio que minha pequena deixou que já não havia lacuna para algo novo.

Foi trágico o acidente, fruto de imprudência, irresponsabilidade e insensatez de um jovem, desses acostumados a ter tudo.

Ela estava no ponto à espera da condução, quando foi surpreendida pelo avanço violento do carro em alta velocidade.

Aquele fatídico lapso de tempo mudou tudo.

O motorista bêbado não só roubou nosso bem mais querido, roubou também minha alegria e razão de viver. Borrou tantos sonhos, os nossos e os dela. Sim, ela sonhava se formar, ter um emprego, casar-se, ter filhos e cuidar da sua casa. Ela era nossa esperança de ter netos.

“- Meu Deus, como um ato tão desumano pode causar tantos danos?” Esse desabafo era uma constante na cabeça de Genaro.

Como consequência material, a justiça confiscou alguns bens do infrator, já que não poderia pagar a fiança e impôs a ele alguns trabalhos sociais. O ato de justiça coibia ações de outros delinquentes por afetar seus bens materiais, mas não tocava seus corações. O verdadeiro penar é na alma, esse sofrimento não há preço que pague.

Demorei a tomar a decisão de pôr a decoração do Natal, mas o fiz porque sabia que deixava a Dora muito contente.

Ali num sofá, surrado de tanto uso, Josefina observou todas minhas idas e vindas, mantendo seu olhar distante. Olhava as dunas e a ponte estaiada lá longe.

Depois da ocorrência fatal, ela se desligou de tudo, mal comia, refugiava-se num lugar distante, há milhões de quilômetros dali.

Enquanto eu me apegava a coisas, Josefina se agarrava a doces lembranças. Na verdade, creio mesmo que ela conversava com nossa filha a todo tempo, como me reportou um dia. Talvez Josefina nunca tenha perdido a Dora e jamais tenha se ressentido da sua presença física.

Por isso na sua expressão não havia pesar ou dor. Ela parecia sempre tão feliz que seus olhinhos miúdos viviam mergulhados em poças brilhantes.

Na noite do Natal, Genaro serviu o prato de Josefina e de Dora, como fazia sempre.

Após a ceia, enquanto a esposa já havia retornado a seu lugar preferido, ele adormeceu na espreguiçadeira da varanda. E nem se deu conta que uma forte brisa soprou com força o sino dos ventos e levou da meia seu primeiro e inusitado pedido. Ele que todos os anos ria dos pedidos de Josefina e de Dora, nesse ano desejou arriscar um pedido ao bom velhinho.

Algum tempo depois, acordou de um salto, buscando algo desesperadamente:

– Dora, Dora! – gritava radiante.

Para sua surpresa, sua linda bonequinha estava bem ali, diante dos seus olhos. A linda menina saiu de perto da mãe e correu para os braços do pai, e ele chorou de alegria.

A contar daquele dia, ele nunca mais parou de vê-la, e a casa se encheu de alegria novamente.

Papai Noel havia realizado aquele estranho desejo contido no papelzinho:

“Papai Noel, se é que você realmente existe, traz minha filha ao menos por um momento de volta.”

Autor José Maria Cavalcanti