Questão de Matemática
DEU A LOUCA NO NALDINHO
Os primeiros minutos daquela madrugada foram de susto. Naldinho, sem se dar conta se Lurdinha estaria ou não acordada, foi logo mandando essa:
– Lurdinha, acho que tô ficando louco! Gritou Naldinho lá debaixo dos cobertores.
– Que é isso, homem, por que você tá assim? Pergunta Lurdinha, inconformada com aquela afirmativa incabível e por ver o marido se apertando debaixo do cobertor.
– Isto começou depois que conversei com o cego Aderaldo. Ele me disse que gastava quase uma hora caminhando da casa dele até o centro. Como imaginei o número de calçadas das muitas ruas movimentadas, carros passando e um montão de obstáculos a vencer, indaguei para ele como ele conseguia aquilo. Ele me respondeu:
“- Simples, tudo é uma questão de Matemática!”
– Mas Naldinho, e por que você encasquetou com isso?
– Seria melhor se ele não houvesse falado aquilo ou dissesse qualquer outra coisa. Lurdinha, aquelas palavras passaram a me incomodar até agora.
– Você poderia explicar melhor, pois estou ficando preocupada!
– Lurdinha, tá vendo este escurinho do quarto, pois bem, aqui debaixo do cobertor a escuridão é praticamente total. Assim vive Aderaldo! Captou?
– E aí, Naldinho? O que que a gente pode fazer se o destino lhe foi desfavorável!
– Lurdinha, você não tá entendendo, o cara vai contando quantos passos ele dá até chegar na primeira esquina. Depois conta outro tanto para cruzar a rua, quando percebe que os carros pararam. Isto ele sabe pelo ronco diferente do motor e o cheiro de borracha dos freios.
– Não tinha parado pra pensar nisso!
– E tem mais, ele está sempre imitando o canto de um pássaro, lembra? Isto tem a ver com cada trajeto. A cada percurso, o número de notas e a música da ave mudam. Ele associa cada itinerário com uma sequência sonora.
– Tá brincando?
– É sério, Lurdinha. Claro que ele foi desenvolvendo o processo aos poucos, com alguns erros e tropeços no início, mas hoje o faz com a maior tranqüilidade, usando apenas a bengala como guia.
– Lurdinha, graças a esse jeito alegre de ser, ele sempre arranjou o sustento para sua mulher e filho. Ninguém consegue negar a ele uma graninha aqui e outra acolá.
– Naldinho, pelo que vejo, ele vive melhor que muita gente, mas agora é hora de você acordar para dar um basta nessa loucura!
– Lurdinha, essa mania de me colocar no lugar do outro é que quase pirei, pensando em uma vida no escuro e cálculos matemáticos.
– Mas Naldinho, tudo na vida é feito baseado em números, desde as pirâmides do Egito ou prédios como o Empire States, a torre Freedom ou o majestoso Burj Dubai. O mundo está banhado em números. Quando se fala em eleição, na verdade é apenas uma corrida de números; quando se debate a inflação, dados estatísticos que retratam escaladas de preços começam a surgir como informações comprovativas. Quando o assunto é superpopulação, onde o foco é a explosão demográfica, sociólogos trazem à baila suas tabelas numéricas para provar A + B. Os jornais enchem suas páginas com os números de mortos, acidentes nas estradas, roubos, assassinatos, sequestros-relâmpago e a coisa por aí vai.
E Lurdinha se empolga e descamba a falar, relembrando-se talvez das excelentes aulas que ela recebeu do apaixonante professor Ptolomeu.
– Tem mais, Naldinho, a Matemática tá em todo lugar. Ela está nos códigos de barras dos produtos e nos registros de quase todas as profissões, e tudo expresso por meio de sua simbologia única, que é uma linguagem universal.
Nisso, Naldinho, sem aviso prévio, aciona o interruptor. Talvez com dois propósitos: o primeiro para trazer luz à escuridão que ele estava; e o segundo, para brecar a fala desenfreada de Lurdinha.
Acho que ele só atingiu o primeiro alvo, pois Lurdinha seguia firme:
– Naldinho, tenho certeza que tudo isso ocorreu com você tem tudo a ver com essa sua mania de ficar jogando xadrez às cegas. O que você quer provar com isso se nem mesmo há competição sem ver o tabuleiro…
– Lurdinha, você realmente tocou no cerne da questão. Por falar nisso, lembrei-me quando perguntaram a um grande mestre como ele fazia para jogar tantas partidas simultâneas às cegas, ele simplesmente explicou: “Eu associo tudo com uma grande cômoda com suas muitas gavetas numeradas. Em cada uma delas eu deposito um tabuleiro, assim, ao chegar com os olhos vendados diante da mesa de cada adversário, abro a gavetinha correspondente, visualizo o posicionamento das peças e, depois de conceituar o que vejo, faço a jogada mais correta com o que exige a posição.”
– Lurdinha, quando jogo às cegas, vejo-me como o Aderaldo ou como tantos grandes jogadores do passado, tais como Alekhine, que jogou contra 29 jogadores ao mesmo tempo ou como Najdorf, que bateu o recorde mundial, ao jogar contra 45 adversários, e até mesmo com o nosso querido Hélder Câmara, que jogou contra 12, tendo o recorde nacional; já Kasparov e Morphy só aguentaram jogar contra 8, Capablanca e Karpov somente contra 4.
– Pode parar, Naldinho, se não vai acabar falando de Philidores e Zukertortes da vida. O que você disse só vem a confirmar que todos os jogos passam pela Matemática. A lenda da origem do xadrez poderia ser uma prova. Ela narra o baile que o sábio da corte deu no seu rei, quando ele ofereceu o que ele quisesse ganhar como prêmio por criar o jogo do reis. Depois de um cálculo matemático proposto, o rei ganhou uma lição extra: ele se deu conta que não era tão poderoso quanto parecia ser pela impotência de não poder pagar seu débito ao sábio.
– Acho que você tem razão, Lurdinha, e talvez seja por isso que eu ainda não desisti do xadrez às cegas. Quero ter meu nome inscrito nas tábuas da história.
– Que ideia, e o que você quer provar com isso, Naldinho?
– Meu único propósito é querer bater o Fischer, que nunca jogou uma única partida às cegas e o outro é conseguir a fórmula secreta para fazer o cavalo percorrer as 64 casas do tabuleiro, passando uma única vez por cada uma delas, sem repetir a quadrícula. Isto tem sido uma dor de cabeça pra muita gente, durante centenas de anos. Você pode não acreditar, Lurdinha, mas estou muito perto da solução.
– Naldinho, não leva a mal não, mas bater o genial Fischer depois de morto talvez seja uma moleza, mas descobrir esta tal fórmula secreta, aí, meu querido, você teria que ser como Euler ou Malba Tahan, que foram excelentes matemáticos e não apenas um enxadrista de beira de piscina!
E aquele debate intelectual acabou com a fala enfezada de Naldinho:
– Tá bom, Lurdinha, não precisa xingar. Já vou tomar meu banho, pois tenho aula mais cedo, assim ganho bem mais.
Autor José Maria Cavalcanti
Confesso que achei muita engraçada sua história envolvendo o casal Naldinho e Lurdinha, embora trate de um tema muito sério. Você nos leva a imaginar o que é a vida de uma pessoa com limitação visual. Tantear no escuro não deve ser uma tarefa fácil, ainda mais tendo que realizar tarefas com cálculos matemáticos.
Essa de jogar xadrez às cegas também para mim é algo inusitado, pois só conhecia as dificuldades desse jogo como os olhos bem abertos, imagino o que seja realizar o cálculo dos lances sem a visualização do tabuleiro.
Conhecedor das moedas pelo tato, cego Aderaldo, participava de uma brincadeira entre os amigos. Quando lhe ofereciam notas de diferentes valores ele sempre optava em ficar com a de menor valor. Todos riam da “ingenuidade” do cego. Até mesmo notas de cem eram rejeitadas por notas de um real. Uns chamava-o de bobo, de tolo e até de doido, mas ele continuava a preferir as notas de menor valor. Um amigo, vendo ser caçoado, questionou: – Como pode você não ficar com a nota maior? Ele então respondeu: – No dia que eu preferir uma nota maior acaba a brincadeira e deixo de levar meus trocados para casa. Tem dia que levo mais de cem reais só em notas menores. E sorrindo questionou: Então, quem é o tolo da história?
É bom ver um novo texto desse apaixonante casal que está sempre envolvido em histórias do cotidiano.
Li que um preso político foi condenado a passar dez anos isolado na cadeia e quando de sua liberdade disse aos repórteres: – Não foi tão ruim assim, ocupei minha mente jogando belas e emocionantes partidas de xadrez.
Como é bom enxergar exemplos de deficientes visuais que não engessam sua vida e seguem em frente, ultrapassando os obstáculos das barreiras arquitetônicas espalhadas por todos os recantos de uma cidade.
Num determinado momento, entre conversa de amigos, sustentei a teoria que o insuficiente visual não é cego, ele vê como qualquer um de nós, só que de maneira diferente.
Fiz uma analogia com o cão, pois ele vê pelo faro. Muitos riram de mim, então mandei que eles colocassem um cão diante de um espelho para visualizar um outro canino e viram que ele não dava nenhum sinal de reconhecimento daquela imagem, porém no mesmo instante, se vira e começa a latir em sentido contrário ao espelho, demontrando que seu concorrente foi reconhecido felo olfato.
No ser humano a visão pode ser substituida por outro órgão dos sentidos.
Quantas vezes você imaginou um lugar quando sente determinado cheiro? ou lembra de alguém quando escuta uma música? Pois estes são alguns exemplos de substituição nos órgãos dos sentidos.
É assim que funciona. Entre os órgãos dos sentidos que mais se adapta à substituição da visão é o tato.
Minha avó materna tinha deficiência visual causado por opacificação do cristalino (catarata) e foi impressionante como desenvolveu uma agudização do sentido auditivo. Nosso organismo se adapta as mais diversas circunstâncias.
Obrigado, Bolog, por mais uma oportunidade de poder comentar assuntos diversos.
Calçar os seus sapatos”… Quando vejo tantas maravilhas da natureza e imagens que são “mudamente” eloquentes, fico pensando no quanto esse sentido é precioso (todos os outros…). Como descrever o mundo para quem nunca enxergou? É algo que dói, profundamente. E vemos o quanto são aguçados nessas pessoas os outros sentidos, compensando e trabalhando dobrado. A natureza toda é uma lição de amor! E como somos falhos não “trabalhando dobrado” e amando da mesma forma…
Não entendo nada de xadrez (imagine, 45 partidas, “ao mesmo tempo”? meus “neurônios” não suportariam NUNCA…). E como parece leve e simples com as crianças! Crianças e xadrez: grande parceria!
Malba Tahan (Professor Júlio César de Mello e Souza – “O homem que calculava”, “Matemática divertida e curiosa”…) como gosto de suas histórias. Amor em ensinar ! Quanta gente incrível e suas histórias maravilhosas!
E foi assim, com uma deliciosa e esperadíssima história da dupla Naldinho e Lurdinha (essa dupla é “um sucesso”, com certeza!) que você abordou vários temas que, mais uma vez, nos colocaram para pensar.
E, tenho certeza também, seus contos são movidos por grandes causas e grandes ideias. Parabéns! Obrigada!
Obs.: Os dois vídeos são muito lindinhos!
O americano Stephen King no seu livro Duma Key, descreve uma passagem de um deficiente caminhando na praia. A cada nove passos ele contava um e assim ele achava que caminhava menos. Quando sua filha lhe telefona e pergunta por sua caminhada, ele dizia: – Hoje andei dezessete passos. Assim os cento e cinquenta e três passos ficavam bem resumidos. Sua meta era aumentar um passo por dia.
Existe várias maneiras de usar a matemática em relação a quantificar as distâncias percorridas.
Acho que o cego Aderaldo, como numa dança de salão, usa os números para definir pontos (marcar os passos) identificando os obstáculos no seu percurso.
Como é bom ver o retorno de Naldinho e Lurdinha. Sempre com histórias divertidas de ler.
O jogo de xadrez faz aguçar nossa percepção para enxergar as várias variantes que se apresenta a cada jogada. São essas diversas possibilidades o grande atrativo desse belo jogo.
Gostei muito da história porque você vem trazendo o tema da matemática, os cálculos na escuridão, até chegar no xadrez jogado às cegas. Façanha desconhecida por muita gente.
De passagem, você aborda o famoso cálculo, conhecido como “Knight’s Tour”, que foi dor de cabeça por muitos e muitos séculos, até que o matemático Euler anunciou ao mundo a fórmula para se atingir o objetivo do cavalo percorrer todas as casas do tabuleiro sem a repetição de casas.
O vídeo que aportei aqui torna a coisa fácil, mas muitos iluminados perderam muitas noites, sem obter sucesso.
Quando fraturei o meu tornozelo foi que percebi o quanto existe de pessoas com traumas físicos. Na fisioterapia me deparava com problemas diversos de quebra de ossos. Percebi que enxergamos e compreendemos melhor a falta dos movimentos quando estamos imobilizados ou impedidos de executar tarefas fáceis como simplesmente andar. Quarenta dias fazendo uso de moletas e mais vinte utilizando bengalas. Reclamava de tudo até entrar na clínica e perceber que meu problema era insignificante mediante tantos outros, alguns irreversíveis. Os obstáculos das barreiras arquitetônicas são o grande vilão da mobilidade do deficiente. Até mesmo o padrão de portas recomendadas para banheiro e quartos são inadequados para cadeirantes e não dá para passar fazendo uso de moletas.
O alegre casal, Naldinho e Lurdinha, nos apresenta um mundo novo de “visão cega” e que nos faz refletir sobre a vida dos deficientes visuais.
O próprio jogo de xadrez impõe respeito e admiração. Se dois rapazes estiverem jogando damas, baralho ou dominó, serão vistos como dois desocupados, mas se os mesmos rapazes estiverem jogando xadrez, serão vistos como dois intelectuais.
Seu texto é um oportunidade de explicar um pouco mais a condição daqueles que vivem na “escuridão”.
As pessoas que nasceram cegas não têm a noção da luz e consequentemente só terão noção das formas por meio do tato e não das cores, diferente daqueles que perderam a visão depois, quando os olhos já estavam acostumados com a realidade. Tais pessoas vivem uma “cegueira branca”, pois em sua memória cristalizaram-se muitas imagens que elas carregarão para sempre.
Quando a cegueira se dá até os cinco anos, o mundo exterior vai se apagando e, pouco a pouco, a realidade torna-se auditiva, táctil e aromática, e a noção da luz e das cores apaga-se da memória.
Um cego aprende logo que deve aguçar sua sensibilidade para interpretar melhor alguns fenômenos, o que para isso conta com a ajuda dos outros sentidos. É uma lástima que muitos cegos são surdos ou têm alguma deficiência auditiva.
Muitas vezes o cego depende muito da sensação táctil, que possibilita a percepção mecânica (análise das formas e texturas) e a percepção térmica (quente ou frio).
Um cego sabe que deve tocar leve (e não apertar) as coisas para senti-las melhor, pois existe um gradiente de sensibilidade nos terminais nervosos das mãos. A força prejudica o funcionamento e dificulta a interpretação.
Desde que habilidoso com as palavras, o cego poderá aprender o funcionamento de uma máquina e abstrair muitas coisas.
A bengala é a extensão da sua mão, o que ele usa para tatear o caminho, evitando cair em um buraco, esbarrar em uma parede e identificar os relevos das superfícies por onde anda.
Genial professor das letras e dos números.
Lendo a Caballah descobrimos a importância que os números tem em nossa vida e como nos influenciam.
Somos realmente altamente influenciados pelos números desde mesmo antes do nascimento!
A mulher/gestante, tem que aguardar nove meses (ou nove luas) para dar à luz ao parto natural, e a termo (no tempo certo)…
A lua faz seu ciclo e influencia as marés…. o período pra se cortar o cabelo , os nomes de Deus são setenta e dois e possuem seus Arcanjos que o defende dos males do Espírito…
Enfim alhures e algures somos influência dos números…desde o despertar ao anoitecer…os fatos … as notícias etc…
Por isso a matemática ser uma ciência exata e tão complexa… e, ao mesmo tempo tão fascinante! O mesmo acontece com o jogo de xadrez e suas variantes e combinações – tão bem utilizadas por nós enxadristas.
De muito fino trato essa postagem , bem como as demais!
Encontro-me e inspiro-me nessas postagens.
Sucesso para as próximas!!
E não nos deixe sem essa companhia letrada – instrutiva…..e tão rica em sonhos…
Já estamos nos referindo à matemática!!
rsss..
lendasdecaissa.blogspot.com
Esta história me fez lembrar do filme “À Primeira Vista”, uma história de amor envolvente, estrelada por Val Kilmer e Mira Sorvino.
O enredo fala de um homem cujo mundo era a escuridão da cegueira, o qual foi iluminado pela ciência e pela magia do amor. Ele, cego desde nascença, trabalha como massagista em um spa, quando conhece a mulher que irá mexer com o seu mundo.
Este conto me fez lembrar das cenas dos cálculos que ele fazia para atravessar a rua e depois tudo que ele teve que reaprender depois que volta a enxergar, graças a uma cirurgia.
Tenho aprendido muito com uma amigona sobre o que é viver com a limitação visual. Não é nada fácil, pois aos poucos é que a sociedade está buscando minimizar as dificuldades de locomoção dessas pessoas especiais que necessitam muito de nossa compreensão.
A cena mais linda do filme é quando ele diz:
“Acho que todos nós vivemos na escuridão quando não enxergamos aquilo que é verdadeiro em nós mesmos, nas outras pessoas ou na vida”.
Parabéns pelo retorno das histórias de Naldinho e Lurdinha.
Veja o vídeo legendado do filmes no link abaixo:
Mais sobre xadrez e números:
http://librodenotas.com/viajealajedrez/22303/la-insondabilidad-del-ajedrez