Doação
COISAS QUE NÃO TÊM PREÇO
Antunes era um pequeno empresário em franca expansão de negócios, aproveitando muito bem os novos rumos da economia.
Só pensava em trabalho, havendo há muito se descuidado do corpo, podendo ser considerado um homem obeso. O comer em demasia e as correrias de dono de empresa consumiam muito do seu tempo, sobrando pouco para a mulher e filhos.
Ainda morava num bairro de periferia da grande São Paulo, mas já tinha em mente levar sua família para um bom condomínio da capital.
Sabia que o dinheiro podia comprar tudo, mas era muito cedo ainda para dar um passo tão grande, principalmente porque gastava muito com os filhos e com a esposa, que queriam tudo que viam pela frente.
Embora vivendo em uma excelente residência, odiava morar entre gente de classes tão variadas, até mesmo pobres, e tinha receio que seus filhos fossem influenciados por aqueles desclassificados.
Era explícita, mas contida, a sua ojeriza contra negros. Tal discriminação se estendia até sua empresa, onde um contratante tinha ordens especiais nesse sentido.
Não muito longe dali, do outro lado da rua, vivia Nicanor, que era um ótimo marceneiro. Com muito sacrifício, havia adquirido aquela pequena casa e tinha muito orgulho dessa conquista. Sua esposa, uma excelente dona de casa, havia dado a melhor educação para os dois filhos. Os meninos eram obedientes, estudavam nos horários programados e, sempre que podiam, iam jogar bola.
Eles eram muito queridos por todos, sabiam como poucos a arte do drible e o caminho do gol.
Mesmo pertencendo a classes distintas, a bola aproximava os filhos de Antunes e de Nicanor, sem que os pais deles soubessem.
Os garotos bons de bola já haviam recebido propostas para fazer testes em grandes clubes, mas eles queriam mesmo estudar. O futebol era apenas seu melhor lazer e uma maneira saudável de se manter em forma.
Não poucas vezes, Antunes deu de cara com Nicanor logo cedo pela manhã, mas nunca o cumprimentava pela cor da sua pele. Além disto, queria também manter distância, sem dar qualquer tipo de trela. Ele saía no seu carrão para a rua e ali aguardava o fechar do portão de ferro para finalmente comandar a partida. Sem se importar com o descaso daquele novo rico, Nicanor montava na sua magrela, que o levava todos os dias para o trabalho, ali mesmo no bairro.
No trânsito estressante das marginais paulistanas, Antunes gastava boa parte do seu tempo e se irritava com aquela perda que poderia ser investida em mais lucro para a empresa.
Seu corpo transpirava, mesmo no ambiente climatizado do carro. O inchaço das pernas e o cansaço que começou a sentir passavam a incomodá-lo um pouco mais. Mas só procurou o médico depois de começar a perder o apetite, a sentir náuseas e a vomitar.
Feita uma bateria de exames, o sangue e a urina revelaram aquilo que o especialista já imaginava: o comprometimento de grande parte do órgão responsável por filtrar os líquidos do corpo.
Tudo aquilo poderia ter sido evitado, desde o aparecimento de sangue e espuma na urina, mas por teimosia e falta de tempo, Antunes nunca foi de tomar maiores cuidados com a saúde. Não queria perder tempo com pequenas preocupações, pois queria conquistar o mundo.
E para agravar mais ainda a situação, Antunes era um desses casos raros. A natureza havia concedido a ele apenas um único rim, devendo haver um transplante o mais rápido possível, pois o órgão estava perto de perder sua funcionalidade.
Mesmo a contragosto de Antunes, a equipe médica o manteve hospitalizado, à espera de um doador de rim.
Aquela situação nova aproximou um pouco mais Antunes dos filhos e da esposa, embora a irritação dele fosse grande e não gostava daquele sentimento de pena que nutriam por ele.
Depois de checar com familiares e parentes, nem um pôde doar para Antunes o rim que ele necessitava. Assim sendo, mandou oferecer a quantia que fosse necessária para comprar um rim, pois sabia que existia um comércio de tráfico de órgãos.
Passou por mais de uma cirurgia, havendo sempre rejeição. O caso era considerado gravíssimo, e Antunes estava desenganado.
Estendido sobre um leito hospitalar, Antunes, já muito magro e com a pele amarelecida, padecia a cada minuto que passava.
Nele já não se via tanta arrogância no falar, apenas aguardava por um milagre.
Quando ninguém esperava, surgiu um doador que não queria ser identificado e que era compatível com o sangue de Antunes.
A cirurgia foi um sucesso, mesmo depois de aguardado o tempo para aceitação do novo órgão pelo corpo do cirurgiado.
Aos poucos, Antunes voltou a se alimentar regularmente, seguindo as recomendações médicas e tomando os remédios para não haver rejeição.
Quando já podia raciocinar melhor, quis saber quanto foi pago por aquele último rim, o qual havia transformado sua vida, quando estava em estágio final.
– Por incrível que pareça, por este você não pagou nada! – disse um dos médicos.
– Como assim, eu poderia pagar a quantia que ele quisesse, podendo ficar sem problemas para o resto da vida, e ele não pediu nada! – indignou-se Antunes.
– Apenas pediu segredo sobre a doação – concluiu o anestesista.
Aquele gesto mexeu muito com a cabeça de Antunes, fazendo-o repensar sua maneira de enxergar as coisas e o mundo.
A partir daí, começou a ser mais humano com os familiares e com a equipe médica, o que estava causando admiração a todos.
Antunes recebeu alta hospitalar e retornou para sua casa. Ainda não podia trabalhar, apenas descansava todos os dias na sua varanda, apreciando o movimento dos transeuntes.
Algum tempo depois, já podendo caminhar, um dia deu de cara com Nicanor, que há muito não o via na sua magrela, companheira inseparável.
De longe, não sei o porquê, olhou para ele de uma forma diferente. Naquele momento, uma força dentro dele o impeliu para atravessar a rua.
Achegou-se à bicicleta e estendeu sua mão, ainda emagrecida, para o vizinho de frente.
Nicanor sorriu e retribuiu aquele forte aperto de mão. Ao retribuir o gesto, Nicanor percebeu nos olhos do homem um inundar de lágrimas.
Houve uma comunicação de olhares, embora não tivessem emitido qualquer palavra.
Daquele dia em diante, Antunes encurtou a imensa distância que ele havia criado entre eles, e passaram a ter uma linda amizade.
Muy buen relato, después de todo el desprecio que Nicanor recibió de Antunes, él no dudó en salvar su vida,sin pedir nada a cambio.
Belo texto com ótima mensagem para repensar a vida, rever conceitos e eliminar de vez o preconceito.
A vida é muito curta e isso é fato. Fazendo uma retrospectiva, contamos nossa vida em poucos dias de fala e, às vezes, em poucas horas relacionamos os assuntos mais marcantes.
Sejamos mais autênticos e mais honestos com os nossos semelhantes, só assim, estaremos promovendo menos injustiças sociais.
Li certa vez que um homem em oração dizia: “Se somos filhos do nosso Deus, como podemos trapacear o nosso irmão.”
Para mim, é de fundamental importância a prática do bem e o incremento do respeito ao próximo.
“A vida é o sopro do criador, numa atitude repleta de amor.” – Gonzaguinha.
Somos um só, universalmente falando.
Deveríamos ter uma só mente e uma só vontade.
Pena que esta verdade está oculta em nosso ser dimensional.
Agimos isoladamente, com egoísmo mesquinho.
O outro é o outro.O sofrimento, a necessidade ou a fome do nosso próximo é algo fora de nosso pensamento.
Essa indiferença nos faz menores.
Algumas pessoas carregam algumas ideias preconcebidas sobre uma determinada raça e leva isso tão a sério que chegam as vias de fato, embora outras não cheguem a externar seu preconceito, ficando apenas na maquinação mental ou em pequenas sutilezas (como piadinhas de mau gosto, por exemplo).
Esta intolerância nasce quando um se julga ser superior e que seu foco de aversão é de qualidade inferior, o que um pesquisador americano provou ser isto uma grande bobagem e que não existe quaisquer diferenças entre as raças.
Gostei que seu trabalho visa derrubar tais barreiras sociais, isto faz a diferença.
Quando um homem, muito rico, estava destratando um coveiro, por se achar superior, foi surpreendido com a resposta:
– O senhor vai ficar muito bem como homem rico do cemitério.
Foi depois dessa conversa que esse homem mudou completamente sua forma de ver a vida, e, entre outras mudanças positivas, começou a respeitar seu semelhante.
As vezes, é necessário um grito de alerta para nos colocar nos eixos e perceber que o ser é mais importante que o ter.
O texto nos presenteia com uma bela mensagem de solidariedade, bem propícia para reflexão nessa virada de ano.
Nicanor é aquele doador que não almeja compensação financeira pelo ato de amor ao próximo.
Mesmo sabendo que existe um comércio clandestino de órgãos humanos, não devemos ter medo de assinar o termo de doação em vida, pois existe muita gente e entidades sérias, buscando minimizar a dor e o sofrer de muitos necessitados.
Seja um doador, sim!
Nati
Muito sensível essa abordagem…
Certos sentimentos devem ser dissipados de nosso interior, entre eles a soberba, a arrogância, a prepotência, a inveja, e alguns mais…
Sabemos quando aqui chegamos, e de qual a maneira… mas jamais podemos supor aonde iremos, e onde termina a nossa existência, se dependeremos de alguém, então é sempre de bom alvitre que sejamos corretos, cortês e educados, com todos…
Ótimo exemplo para ser ensinado às gerações futuras…
Parabéns pelo tema proposto!! Nobre José!
Abçs
Passando para avisar que já saiu nova postagem do meu blog… abçs….amigo
http://lendasdecaissa.blogspot.com
Linda história que mais uma vez nos leva às “famosas reflexões”:
– Como tudo realmente funciona como um “sopro”, sujeito às grandes mudanças do percurso… Como é bom aprendermos isso antes das grandes tragédias da vida!
– Relacionamentos sempre podem ser restaurados quando existe transformação. Precisou de algo muito forte (como a quase morte), mas o resultado valeu a pena;
– “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
http://pensador.uol.com.br/autor/john_donne/
Antunes, homem de coração duro, precisou que a vida lhe mostrasse pelo sofrimento que tudo é muito mais simples quando estamos com o coração aberto e dispostos a amar de verdade.
Uma lição de vida que nos faz refletir em muitas históras da vida de cada um de nós.
Nicanor mostrou que seu amor ao próximo era mais importante que tudo doando seu rim sem cobrar nada em troca.
Linda história.